Documentos secretos revelam que ditadura expulsou diplomatas gays
Documentos secretos indicavam resultados de comissão de investigação: diplomatas gays deveriam ser aposentados compulsoriamente
atualizado
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Um novo relatório secreto chegou à mesa do ministro José de Magalhães Pinto, em Brasília, em 7 de março de 1969. Na época, o chefe do Itamaraty recebia documentos sigilosos sobre a vida pessoal de profissionais do Ministério das Relações Exteriores. O ofício, após meses de análises, indicava resultados da Comissão de Investigações Sumárias (CIS): diplomatas brasileiros devem ter suas carreiras prontamente finalizadas por meio de aposentadoria compulsória. Os profissionais eram homossexuais e, segundo o entendimento do governo militar, tal “incontinência pública escandalosa” poderia “comprometer o decoro e o bom nome” do país.
A ditadura militar expulsou pelo menos sete diplomatas e outros seis profissionais administrativos do Itamaraty porque eram homens gays. A Comissão de Investigações Sumárias ainda sugeriu que outros dois oficiais de chancelaria e 10 funcionários internos passassem por exames médicos e análises sociais para comprovar a possível suspeita de serem homossexuais.
Um dos diplomatas é Ricardo Joppert, que foi afastado oficialmente em 29 de abril de 1969, quando atuava no cargo de segundo-secretário no consulado de Gotemburgo, Suécia. Em entrevistas, ele chegou a afirmar que só soube de seu afastamento por meio da imprensa à época.
O profissional só conseguiu voltar ao cargo quase duas décadas depois, após um memorando da primeira Comissão de Anistia, instalada no Ministério do Trabalho em janeiro de 1980, sugerir que Joppert voltasse ao Ministério das Relações Exteriores. Mesmo assim, ele precisou realizar exames médicos para isso.
Alguns que passaram por violações semelhantes nunca conseguiram retornar aos seus cargos. O primeiro-secretário Nísio Medeiros Batista Martins, por exemplo, morreu antes da revisão proposta pela anistia. Já o servente Dionysio Fernandes Borges, que atuava como funcionário administrativo do MRE, lutou pela carreira, mas continuou afastado por causa do preconceito anos depois.
“A Comissão de Anistia de 1980 sugeriu que o funcionário fosse submetido a exame médico, psiquiátrico e psicológico, no Centro de Medicina Aeroespacial da Aeronáutica, que expediu diagnóstico comprovando a alegação de homossexualidade patológica [sic] e emitindo parecer de que o funcionário seria incapaz para o fim a que se destina. Tendo em vista os motivos acima, a Comissão decidiu informar que a reversão do funcionário seria contrária aos interesses da Administração”, indica o parecer da Comissão de Anistia.
José Eduardo Brasil Vivacqua, oficial de chancelaria expulso por ser homossexual, também não “atenderia aos interesses da administração”, apesar de não possuir registro “que desabonasse sua conduta funcional”. Nem mesmo os elogios oficiais e o profissionalismo de anos foram capazes de proteger o funcionário contra as violações políticas.
Investigação Sumária
A Comissão de Investigação Sumária de 1969, também conhecida como CIS-69, foi um dispositivo criado por meio do Ato Institucional nº5 e designada por meio de uma portaria, em 3 de fevereiro do mesmo ano. A organização unia informações sobre a vida pessoal de membros do Itamaraty.
O objetivo descrito pela CIS 69 era “elaborar um conceito sobre cada funcionário, através de depoimentos dos chefes dos vários órgãos da Secretaria de Estado, de autoridade da Casa, dos Chefes das Missões diplomáticas e repartições consulares, solicitados estes últimos por circular-telegráfico”.
Além da homossexualidade, os motivos indicados pela comissão para expulsar profissionais do Ministério das Relações Exteriores: “Vício de embriaguez; vida irregular, instabilidade emocional, indisciplina funcional, insanidade mental, risco de segurança, uso de entorpecentes e motivos de saúde”.
Um dos casos mais conhecidos da CIS-69 foi o pedido de afastamento do cantor Vinicius de Moraes por “alcoolismo”. No entanto, a comissão propôs o aproveitamento do “homem de letras e artista consagrado” no Ministério da Educação e Cultura, onde seus serviços poderiam ser “melhor aproveitados”.
Murilo Mota, doutorando no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), realizou publicação científica sobre o tema no ano passado. De acordo com o pesquisador, o principal impacto da ditadura militar brasileira sobre as relações internacionais e a atuação dos diplomatas brasileiros foi justamente a interrupção de carreiras.
“Conforme informações disponíveis no artigo, publicado pela Cadernos Pagu, ao todo, 17 diplomatas foram afastados pela Comissão de Investigações Sumárias de 1969 (CIS-69)”, aponta. Mota pontua que “ao excluir essas pessoas do Ministério das Relações Exteriores, a ditadura militar impediu processos de formulação e execução da política externa brasileira democráticos”.
Luta contra violações
Há alguns esforços para tornar a diplomacia brasileira mais inclusiva e representativa da sociedade brasileira. A partir da década de 1990, por exemplo, houve a eliminação de barreiras institucionais que limitavam a ascensão das mulheres na carreira diplomática. Houve também a adoção do sistema de cotas para pessoas negras a partir de 2010, antes mesmo da Lei Nº 12.990, de 9 de junho de 2014, que instituiu a cota de 20% no funcionalismo público para pessoas negras.
A Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB) é uma das principais instituições que têm trabalhado para evitar que violações políticas se repitam dentro do MRE. O sindicato luta por uma reforma do regime jurídico do Itamaraty, pois acredita que, desde a adoção do regulamento em vigência (Lei nº 11.440, de 29 de dezembro de 2006), a carreira diplomática e a sociedade brasileira passaram por mudanças importantes.
“Cada vez mais se dá importância à diversidade das pessoas, reconhecendo que a pluralidade de origens, culturas, etnias, gêneros e orientações sexuais enriquece o tecido social do país. Em resposta a essa mudança de perspectiva, instituições públicas também devem adotar políticas mais inclusivas, demonstrando um compromisso real com a representatividade e a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos. Por isso, é necessário atualizar o regulamento para continuar alinhando o MRE com a sociedade que ele representa”, aponta ADB.
A associação dos diplomatas brasileiros reflete também que a importância da valorização dos regimes democráticos permite ao Brasil, além de evitar sanções internacionais, um maior diálogo e negociação com diversos países: “A democracia mantém nossas portas mais abertas para outras nações”.