Dívidas, corte de água e baixo movimento. Crise atinge feiras do DF
A maior parte dos 78 centros de compras desse tipo sofre com elevada inadimplência. Sem investimentos, espaços perdem clientes
atualizado
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Aos 62 anos, a feirante Raimunda de Almeida Frazano lembra com orgulho do passado. Por quase quatro décadas, ela ocupa as barracas 2 e 8 da Feira Permanente de Taguatinga. Com o dinheiro da venda de peixes e frutos do mar no centro de compras, conseguiu financiar os estudos dos dois filhos, hoje formados. No entanto, um problema comum à realidade de quem tira o sustento desse tipo de comércio no Distrito Federal ameaça a continuidade dos negócios: o baixo movimento.
“Abandonada”, como diz se sentir, Raimunda lamenta a tímida procura pelas iguarias. Os lucros de sua peixaria caíram pela metade e o pouco valor arrecadado já dificulta na manutenção da loja. “Sempre trabalhei com comércio, é o que eu sei fazer. Temos uma boa estrutura aqui, falta mesmo é quem queira comprar. Tem morador de Taguatinga que nem mesmo sabe da existência da feira”, queixa-se.
O desabafo de Raimunda encontra ressonância entre os demais lojistas do espaço. Itamir da Silva Paula, 53 anos, é outro a reclamar da falta de apoio dos moradores da cidade. “A gente entende que o povo anda meio sem dinheiro, mas vivemos disso. Antigamente, era muito cheio no fim de semana. Hoje, dá até para dormir aqui na loja, dependendo do horário, pois não aparece comprador.”
Nesta edição do DF na Real, o Metrópoles visitou seis dos 78 centros de compra da capital e constatou que histórias como as de Raimunda e Itamir se repetem.
Inadimplência
Presidente da Associação dos Feirantes da Feira Permanente de Taguatinga, Katiane Sandra Pereira da Silva diz que a entidade tem trabalhado para tentar atrair o público de volta, mas esbarra no elevado índice de comerciantes inadimplentes. “Hoje, a nossa realidade é de que 60% dos feirantes estão inadimplentes. Isso equivale a R$ 130 mil a menos nos caixas. Fora isso, temos uma dívida trabalhista grande. Recebemos notificação de penhora e estamos na iminência de termos a conta da feira bloqueada”, explica.
Sem dinheiro, a associação e a Administração Regional encontram dificuldades para investir em reformas estruturais e melhorias. O cenário de inadimplência se repete em um dos pontos turísticos mais visitados e conhecidos de Brasília. Situada no coração da capital federal, a Feira da Torre viu a quantidade de turistas e consumidores que visitam o centro semanalmente despencar de 40 mil para 5 mil. Em paralelo, cresceu o número de locatários endividados.
De acordo com o presidente da associação de feirantes do local, Jocélio Aleixo da Silva, 75% daqueles que alugam boxes estão com as contas no vermelho. O vendedor atribui a alta quantidade de devedores à estrutura precária e às obras realizadas nos arredores da Torre de TV. “A única coisa que podemos dizer que melhorou aqui é a iluminação. De resto, faltam sinalizações, placas e quem instrua o turista. Sem falar nessa obra do elevador da torre que interditou o espaço e complicou ainda mais o nosso movimento. Como não tem investimento aqui, que é um lugar público, os lojistas se acham no direito de não pagar as taxas de rateio, mas está errado. O pagamento é assegurado por lei e lei não se discute.”
As taxas de rateio, às quais Jocélio se refere, são obrigatórias e instituídas pela Lei das Feiras. A legislação, aprovada em 2012, repassou a competência de gerir, administrar e fiscalizar dentro das feiras às administrações regionais. Para isso, são cobradas quantias dos comerciantes. A decisão, no entanto, desagradou boa parte dos comerciantes, que se recusam a efetuar o pagamento da contribuição.
Corte de água
As dívidas da Feira da Torre levaram a Companhia de Saneamento Ambiental (Caesb) a cortar o fornecimento de água do local, que segue desabastecido há mais de dois anos. A interrupção na distribuição, no entanto, só atinge a área comum do espaço, onde os banheiros estão instalados. Os boxes da praça de alimentação seguem com o fornecimento em dia, uma vez que a cobrança das taxas de luz e água é individualizada.
O feirante Daniel Liberato, 40, lamenta ver o comércio da família, presente na Torre desde 1985, sofrer com a falta de incentivo. “A grande verdade é que a feira está subutilizada. Estamos falando de um lugar estratégico, localizado entre os hotéis”, reclama.
Além da Torre, a Feira do Guará foi outra a ter o fornecimento de água interrompido por inadimplência. Atualmente, o centro de compras ostenta dívidas que chegam a R$ 166.483,86. A área comum está sem o recurso desde 21 de setembro de 2018. A fim de reverter o quadro, a Associação do Comércio Varejista Feirantes do Guará (Ascofeg) chegou a recorrer à Justiça, mas teve o pedido negado pela 1ª Vara da Fazenda Pública do DF.
A questão da falta d’água no local pegou vendedores e compradores de surpresa. Comerciantes ouvidos pela reportagem reclamam de que a circulação da informação do corte no fornecimento está afugentando potenciais clientes. Segundo os lojistas, a situação é a mesma do observado na Feira da Torre: apenas parte do recurso, destinado aos banheiros e higiene do espaço, se encontra bloqueado: restaurantes e demais lojas recebem água em dia.
Com 10 anos de feira, Sandra Silva, 40, diz que os “boatos de que a feira está sem água têm piorado o já ruim movimento”. Relata ter percebido nas contas do mês o impacto da propagação da notícia. “Antigamente, eu tirava R$ 7 mil por final de semana e, na semana passada inteira, ganhei R$ 1,5 mil. Os restaurantes sofrem muito, pois a feira é conhecida pelas comidas. São eles que atraem as pessoas para cá. A gente tem tentado sobreviver, mas com tudo isso que está ocorrendo, complica. Eu, por exemplo, tinha cinco funcionários e, hoje, não tenho mais nenhum.”
Quem também viu menos dinheiro entrar no caixa foi a comerciante Roseli Sousa de Lima e Silva, 49. Ao Metrópoles, a funcionária do restaurante fez questão de mostrar as contas de água pagas pelo comércio à Caesb nos últimos meses. Mesmo assim, cobrou maior empenho da associação na administração do espaço. “A higiene é algo a se melhorar. Os banheiros estão imundos, é uma feira suja. Há também um problema recorrente quando chove. Durante o período, nós sofremos com os vazamentos no teto da feira”, reclama.
Comércio informal
Em um dos centros de compra mais antigos da capital, na Feira Permanente de Ceilândia, “tradição” é a palavra encontrada por Francisco Pinho de Souza, 50, para descrever o trabalho que ele e o pai mantêm desde 1980. No DF, é tarefa difícil encontrar um apreciador da culinária nordestina que desconheça o Rei do Mocotó, operante nos boxes 404 e 405 do espaço. Requisitado, o restaurante vê o movimento decair com o crescimento do comércio informal de alimentos nas redondezas. “O pessoal de fora [ambulantes] não paga imposto, então, pode cobrar mais barato pela comida. Mesmo eu tendo um prato de melhor qualidade, a maioria vai preferir o mais barato”, salienta.
A reclamação é a mesma no box ao lado, onde Francinaldo Pinho, 45, administra o restaurante Kome in Pé – conhecido por suas raízes nordestinas. “Eu sei que todo mundo precisa trabalhar, mas o poder aquisitivo das pessoas caiu muito. A comida aqui não é cara, cobro R$ 10, R$ 12 pelo prato e, mesmo assim, tem quem reclame do preço. O comércio informal atrapalha nesse quesito”, explica Naldo, como é chamado pelos colegas comerciantes.
A concorrência desleal também atrapalha os negócios de quem vive do comércio na Feira Modelo de Sobradinho. Segundo a presidente da associação dos feirantes do espaço, Maria dos Remédios, 49, o espaço recebeu menos 60% de consumidores em decorrência do aumento no número de ambulantes e feiras irregulares que se instalam nos arredores do centro de compras.
“Recentemente, abriu uma feira aqui nas proximidades que oferta preços desleais. Essa feira itinerante tem vendido seus produtos a preço de fornecedor e isso ameaça seriamente a continuidade da nossa. Não posso concorrer com alguém que vende três calças por R$ 100, enquanto a fábrica me cobra R$ 35 por uma unidade”, explica.
A vendedora Margarida Evite de Oliveira Dantas, 63, por sua vez, diz que a feira não é a mesma de antes da reforma. “Ela [a obra] atrapalhou o movimento. No governo do Arruda, pediram que nós saíssemos daqui e nos colocaram em um lugar onde nossa única estrutura eram lonas e tendas que caíam sobre nossa cabeça. Ficamos seis anos em um lugar que era temporário e que deveria durar seis meses apenas. Quando chovia, eu trabalhava com os pés na lama.”
Já a vendedora de flores Inês Rodrigues, 76, reclama da estrutura precária do local. “Falta um estacionamento decente, asfaltado. Você precisa ver a poeira que entra aqui, é muita, e isso atrapalha a limpeza da feira.”
Insegurança
Não se assuste ao se deparar com galinhas vivas transitando pelos boxes da Feira Permanente do Gama. Conhecido pelos produtos frescos ofertados, o centro de compras rural sofre com um incômodo problema: a violência. À reportagem, um dos lojistas há mais tempo no comércio, Domingos Gonçalves, 66, relatou ter sido vítima de um assalto recente à mão armada. “O bandido chegou aqui com uma arma e apontou para mim, colocou a arma na minha cara. Deixei que levasse meus pertences pessoais e instalei uma câmera para tentar inibir futuros roubos.”
Aos 80 anos, Pai Joaquim, como gosta de ser chamado, relembra um episódio traumático ocorrido há pouco tempo que acarretou prejuízo ao seu comércio. “Um ladrão arrebentou minha porta e levou R$ 10 que estava no caixa. Não tinha muito dinheiro aqui, era noite, mas me custou R$ 150 para consertar. Isso ocorre porque só existe um segurança para tomar conta da feira toda durante o período.”
Leopoldino Gonçalves, responsável por levar a reclamação dos vendedores da feira à Administração Regional do Gama, explica que a associação não consegue contratar mais vigilantes por falta de verbas, também provocada pela grande inadimplência da feira, que abrange 60% dos locatários.
“A gente sabe dessa realidade: feirantes que são ameaçados por usuários de drogas e guardadores de carro. Mas acontece que tiraram o posto da Polícia Militar que ficava aqui e, com isso, a violência cresceu na região. Hoje, temos gente sendo assaltada em plena luz do dia, às 16h”, destacou.
Outro lado
Procurada, a Secretaria de Projetos Especiais garantiu que está vistoriando e colhendo informações de todas as feiras para avaliar projetos que melhorem e revitalizem os locais. Segundo a pasta, ainda não se sabe a modelagem de tais projetos, mas a “formulação de parcerias público-privadas pode ser um caminho”.
Veja abaixo a resposta sobre a situação de cada uma das feiras visitadas pela reportagem:
Feira da Torre de Televisão:
A Administração do Plano Piloto informou que atua em conjunto com a Secretaria Executiva das Cidades e o DF Legal em levantamento da situação dos problemas relatados pelos cerca de 400 feirantes. O órgão afirma já ter identificado diversas impropriedades relacionadas à ocupação irregular dos boxes, conflitos entre feirantes e problemas na gestão compartilhada dos espaços.
Em nota, o órgão reforçou que a inadimplência, que resultou em corte d’água, é dos feirantes junto à Caesb, e que a Administração e a Secretaria Executiva das Cidades trabalham no sentido de solucionar questões referentes aos débitos e à gestão do chamado rateio. A regional pontuou, por fim, que está em contato com outras equipes de governo para construir soluções estruturadas e de longo prazo para esses espaços, na tentativa de, além de qualificá-los, conferir maior autonomia aos lojistas.
Feira Permanente de Ceilândia:
Em nota, a Administração Regional de Ceilândia declarou que 30% dos feirantes estão inadimplentes e que, pelas regras, o devedor é advertido três vezes. Caso não regularize, será suspenso por 15 dias. “O dinheiro recolhido vai para o tesouro e volta como recursos”, diz o texto.
Feira Permanente de Sobradinho:
A Administração Regional de Sobradinho ressaltou que a associação dos feirantes é a responsável pela gestão da feira. Segundo o órgão, não é de sua competência “a divulgação do espaço e a fiscalização de questões relacionadas com a inadimplência dos feirantes e eventuais dívidas trabalhistas”.
Ainda em nota, garantiu ter realizado obras na região, como “parolagem do estacionamento, construção de rampas de acesso, limpeza e operação tapa-buracos no estacionamento já asfaltado”.
Feira Permanente do Guará:
Em nota, a Administração Regional do Guará informou estar ciente da situação e que pretende buscar solução para que os feirantes possam trabalhar dentro da regularidade. Nas feiras da cidade, os valores das taxas variam de R$ 5,25 a R$ 7,84 por m² e, atualmente, 50% dos feirantes não estão em dia com o pagamento.
Feira Permanente de Taguatinga:
A Administração Regional de Taguatinga afirmou que tem realizado a manutenção da Feira Permanente da região. O órgão declara ter instalado um parquinho no local, a pedido dos feirantes. As obras de manutenção são financiadas pela taxa de rateio, conforme ressaltado em nota.
Ainda de acordo com a regional, o funcionamento da feira “não é totalmente afetado pela inadimplência dessas taxas de ocupação pública, mas devido à inadimplência do valor cobrado pela entidade representativa”.
Até a última atualização deste texto, a Administração Regional do Gama não havia respondido aos questionamentos da reportagem.