Medo da maioridade: jovens sofrem com proximidade da saída de abrigos
Ao completar 18 anos, meninos e meninas que moram em instituições de proteção à infância e juventude têm de procurar outro local para viver
atualizado
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João* tem 17 anos e, ao contrário da maioria dos jovens, teme pelo próximo aniversário. A chegada da maioridade será marcada por incertezas e dúvidas para ele e outros meninos e meninas que vivem em uma das 14 casas de acolhimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no Distrito Federal. Eles não são necessariamente órfãos, alguns sequer chegaram a integrar uma lista de adoção, e foram parar no local após intervenção da rede de proteção da infância e juventude e determinações judiciais. O caminho até o espaço, via de regra, passa por problemas e diversos fatores de risco envolvendo a família desses menores.
Um desses determinantes é a pobreza e os males associados à miséria. João, por exemplo, é um dos meninos de origem pobre, nascido no Entorno de Brasília, que foi rejeitado e abandonado pela própria família. Sozinho, engole seco e embarga a voz ao se lembrar da mãe. Sua história é protegida pelo segredo de Justiça. “Eu preciso aprender a perdoar”, repete o adolescente, sem entrar em detalhes.
João já passou por seis abrigos diferentes, desde os oito anos. É um jovem tímido, mas com grandes habilidades artísticas. Já quis ser jogador de futebol e agora deseja virar músico. O rapaz possui um caderno com letras de rap, que não mostra a ninguém, mas já “batalhou” em disputas de versos nas escadas da estação do metrô da Praça do Relógio. Apesar do sonho de se tornar artista, ele tem os pés no chão e planeja futuro mais realista: uma oportunidade de emprego ou o ingresso no serviço. A visão mais pragmática ganha força com a proximidade em deixar a Casa Transitória, em Taguatinga. O imóvel possui sete cômodos, com quartos separados para meninos e meninas, onde fazem cinco refeições diárias e acompanhamento pedagógico e de saúde.
Mesmo que João pretenda deixar de lado o desejo de viver das artes por um tempo para procurar um emprego “tradicional”, ele tem um grande empecilho. Assim como diversos jovens na sua situação, o rapaz sofre com a defasagem escolar. Aos 17, frequenta o 7º ano do ensino fundamental, enquanto colegas da mesma idade estão terminando o ensino médio. A falta de escolaridade e de experiência têm sido empecilho para o ingresso no mercado de trabalho.
Oportunidade
Para dar aos jovens a chance de sobreviverem por conta própria após saírem do abrigo, o projeto Ocupe, da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), em parceria com os Anjos do Amanhã, da Vara da Infância e Juventude (VIJ), oferece o primeiro emprego aos adolescentes que completam 18 anos.
A autonomia desses meninos e meninas está no foco do trabalho nos centros de acolhida. A dura realidade é sempre reforçada. “Aos 18 anos, tudo acaba e os adolescentes têm uma maioridade forçada. Eles possuem essa preocupação de que, aos 18, terão de sair. Esses meninos e meninas vivem uma realidade cruel. Primeiro, têm a ilusão dessa casa toda montada, com todas as refeições, com horário, psicóloga e, de repente, tudo acaba”, resume a coordenadora da Casa Transitória, Natália Alves de Brito.
Por se tratarem de jovens que ainda carecem de formação profissional, o acordo da Justiça com os empresários envolve uma série de proteção ao emprego deles. “Também precisa capacitar quem está contratando esses meninos, informar quem eles estão empregando e torná-los sensíveis a toda a história de vida desse adolescente”, diz Natália.
Consciência forçada
Aos 15 anos, Paula* já se preocupa com o dia em que terá de sair do abrigo onde mora, em Taguatinga. Ela frequenta o 9º ano do Ensino Fundamental e estagia em uma empresa no contraturno. Dos R$ 600 que recebe mensalmente, economiza R$ 400, religiosamente depositados em uma conta poupança, com a qual espera contar no dia em que tiver de se virar sozinha. Os outros R$ 200, gasta com as despesas pessoais e lazer.
Desde que tinha 10 anos, Paula diz que sonha em estudar direito. “Já estou até lendo um livro de direito. É um livro bem grosso e já estou no artigo 5º”, conta a menina. A obra em questão é a Constituição Federal de 1988.
Estudiosa, a jovem se preocupa com o Programa de Avaliação Seriada da Universidade de Brasília (PAS-UnB) e com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “Ainda não chegou a hora de fazer, mas já posso ir estudando”, avalia.
As relações afetiva e de dependência criadas dentro dos abrigo costumam levar os egressos de volta às casas onde passaram parte da vida. “Não teve nenhum que tenha saído e não tenha voltado, seja para pedir uma ajuda, uma orientação ou reconstruir um vínculo. Quanto mais realidade a gente trouxer à vida deles, maior a chance de sobreviver lá fora. A vida desses adolescentes não chega nem perto da de um que está com a família. A ciência da saída gera sofrimento”, lamenta a diretora da Casa Transitória.
Primeiro emprego
Embora não tenha vivido em abrigo, Maria Stephanie de Siqueira, 18, foi uma dessas crianças em situação de vulnerabilidade contemplada pelo projeto da CDL com o Anjos do Amanhã. Ela mora em Samambaia com o “pai de consideração” e os três irmãos mais novos. Quando completou a maioridade, ganhou um emprego em uma loja de roupas para bebês em um shopping de Taguatinga. A preparação para o primeiro emprego começou antes. A antecipação deu resultado, pois ela se adaptou bem ao cargo e é considerada pelo empregador uma excelente vendedora.
“Quando me ofereceram a vaga, eu estava atrás de um curso de secretariado, mas os horários não eram compatíveis. Preferi o emprego, pela primeira vez fichada. O curso eu vou atrás depois. Ainda tenho o sonho de fazer pedagogia e me tornar professora. Já ensinei as minhas irmãs pequenas”, revela Stephanie.
As coisas começaram a melhorar na família da jovem a partir da adesão ao programa. O irmão dela, 16, também foi beneficiado com uma oportunidade de estágio. Com três pessoas gerando renda em casa, as contas se estabilizaram, a ponto de abrirem mão de programas assistenciais. “Me senti acolhida na loja e tenho orgulho de ter participado do projeto”.
Qualificação
Uma das coordenadoras do projeto e presidente da Fundação CDL, Andrea Vasquez acredita na ideia de que os empresários irão adotar jovens encaminhado pelo programa. “A gente quer cuidar desse adolescente saído do abrigo, muitas vezes, sem escolaridade e qualificação. Nós vamos capacitá-lo e apoiá-lo. Sem esse projeto, a falta de experiência o faria ser rejeitado”, analisa Andrea.
Segundo a presidente da Fundação CDL, os envolvidos no projeto estão tentando fazer com que as forças de segurança deem prioridade na convocação de meninos com 18 anos, moradores desses abrigos, alistados no serviço militar obrigatório. “Estamos tentando um alinhamento com o Ministério da Defesa para a convocação desses meninos, que não atendem aos requisitos exigidos pelo Exército, Marinha e Aeronáutica”, ressalta Andrea.
Proteção
A supervisora da Seção de Fiscalização, Orientação e Acompanhamento de Entidades, Vânia Sibylla Pires, reforça que o Estatuto da Criança e do Adolescente prioriza a reinserção do menor de idade à família biológica, a condução a um dos abrigos deve ocorrer somente quando não há condições de proteção ou riscos dentro de casa.
O envolvimento com drogas e criminalidade ronda os abrigos. “O tráfico já sabe que as casas de acolhimento são um nicho para seduzir adolescentes e usá-los como avião. Isso está acontecendo em demasia e o Ministério Público, as polícias e o GDF já estão sabendo. Estamos tentando uma série de ações junto a esses órgãos para colaborarem com ações efetivas”, conta Vânia.
Ao contrário dos jovens que cumprem medidas socioeducativas, os moradores dos abrigos têm liberdade para sair. Os profissionais e cuidadores dessas casas, para além de todo o trabalho de promoção da autonomia, também precisam lidar com o uso de drogas, delitos e até mesmo prostituição. “Já houve casos de adolescente acolhido entrar para o mundo da prostituição. As responsáveis foram atrás da polícia e do Conselho Tutelar, moveram o mundo para retirar esses acolhidos da situação de perigo. A situação socioeconômica potencializa outros problemas. Essa criança e adolescente acaba ficando à mercê do perigo da rua”, diz a supervisora da VIJ.
Empresários que desejem conhecer melhor ou aderir ao projeto podem entrar em contato com a Fundação CDL por meio do telefone (61) 3218-1400.
*Nomes fictícios para preservar a identidade das vítimas