DF: por semana, uma mulher entrega à Justiça o filho para adoção
Sigilo é garantido por lei. Supervisor da Vara da Infância e Juventude do DF diz que abandono é crime e explica que entrega legal é proteção
atualizado
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No último dia 17, o caso da bebê Maria Flor, encontrada por populares que passavam por uma área na Candangolândia, chamou atenção para a temática da adoção no Distrito Federal. A menina estava enrolada em uma manta, com parte do cordão umbilical rasgado e coberta por formigas. Ela usava fralda, apresentava dificuldade para respirar, tremia de frio e estava praticamente com o corpo coberto pelos insetos.
Levada ao Hospital Materno Infantil (Hmib), permanece internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal. O quadro é considerado estável.
Notícias de bebês abandonados na capital federal não são raras. Com o intuito de evitar situações que exponham recém-nascidos, a Vara da Infância e Juventude do DF dispõe de um serviço de acolhimento e orientação às gestantes que não desejam ou têm dúvidas em assumir seus filhos. O programa da VIJ-DF é pioneiro no país e serviu como inspiração para outros projetos Brasil afora.
Levantamento obtido pelo Metrópoles mostra que, neste ano, a cada seis dias, ao menos uma mulher buscou apoio da Justiça para entregar seu bebê ainda em gestação ou já nascido para adoção.
De 1º de janeiro a 20 março deste ano, 13 mulheres procuraram autoridades manifestando o desejo de não ficar com seus rebentos. Ao longo de 2018, 42 mães foram atendidas, contra 37 em 2017. O supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da VIJ-DF, Walter Gomes de Sousa, estima que o total de mulheres atendidas até o fim deste ano aumentará.
Segundo ele, as legislações vigentes — Lei nº 12.010/09 e Lei nº 13.509/17 — deram mais segurança e inovaram na entrega voluntária de uma criança à adoção, garantindo à mulher o direito ao sigilo, de receber assistência psicológica e de ser ouvida em audiência judicial.
“A proteção à intimidade, o acolhimento respeitoso e a garantia do sigilo judicial são estímulos que estão levando muitas mulheres conflitadas com a gestação a procurarem a Justiça infantojuvenil para formalizarem o desejo de entregar o filho. Evidentemente, cada uma carrega histórias distintas e tem razões diversificadas quando tomam uma decisão tão delicada e cercada de complexidades e incompreensões sociais”, detalhou o supervisor.
Estupro coletivo
A reportagem teve acesso a um resumo de atendimento, já com nome e identificação retirados por questões de sigilo. Gestante, uma jovem teria procurado o serviço de adoção para falar de sua gravidez, resultado de um estupro coletivo em uma festa com amigos.
Apavorada diante do que lhe aconteceu e temendo por sua integridade física e de sua família, ela optou pelo silêncio. Tempos depois, veio a notícia da gravidez, e isso a fez cogitar suicídio e a possibilidade do aborto. Entretanto, por razões religiosas, decidiu dar continuidade à gestação e descobriu, pela internet, que seria possível entregar a criança para adoção à Justiça.
Ao final do processo, a mãe manifestou-se, em sua última entrevista psicossocial, positivamente à entrega do filho.
Leia um trecho do depoimento dela:
“Ainda bem que surgiu através da Justiça a alternativa da adoção e o oferecimento de um espaço onde me senti amparada, compreendida e fortalecida para lidar com a dor, o sofrimento e superar essa difícil etapa de minha vida o mais importante foi saber também que uma família com muito amor, respeito e responsabilidade, devidamente avaliada pela Justiça, receberia essa criança e a transformaria em filho. Consegui por meio do acompanhamento técnico realizado pela Vara da Infância e da Juventude transformar a dor e o desespero em esperança e superação”, diz trecho do texto ao qual o Metrópoles teve acesso.
Ainda segundo Walter Gomes, a entrega do filho em segurança é possibilidade prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e não é crime. O que se configura delito é o abandono de incapaz, o aborto, o comércio, o infanticídio ou a adoção à margem da legalidade. Na prática, o processo de entrega não é tão simples.
Uma vez concretizada, a adoção pela nova família é irrevogável. Apesar disso, a lei garante que a mãe biológica aguarde um período, durante o processo, para se certificar da decisão. Infelizmente, ainda temos casos de entrega irregular.
Walter Gomes de Sousa, supervisor da área de adoção da VIJ-DF
Preconceito
De acordo com a Vara da Infância e Juventude, muitas mulheres que manifestam desejo pela entrega ainda são alvo de preconceito e acabam pré-julgadas. Para minimizar o problema, a capital tem uma Lei Distrital, a nº 5.813/2017, que determina a fixação de placas nas unidades de saúde para informar a população.
“A entrega de um filho para adoção, mesmo durante a gravidez, não é crime. Caso você queira fazê-la ou conheça alguém nesta situação, procure a Vara da Infância e da Juventude. Além de legal, o procedimento é sigiloso”. As placas devem conter, ainda, endereço e telefone atualizados da VIJ-DF.
Mas o que leva alguém a doar um filho? Os motivos, segundo Walter Gomes, variam. Na maioria das vezes, são mulheres vítimas de estupro ou que não planejaram a gravidez. A falta de apoio do pai da criança é outro fator que influencia na decisão. Ainda há casos das precárias condições financeiras, usuárias de drogas ou simplesmente aquelas que não queriam ser mães.
“Em alguns casos, encontramos, inclusive, ambos genitores, casados e com filhos, mas que decidiram não querer outras crianças naquele momento”, explicou.
Desistência
Dados fornecidos pela Vara, no entanto, apontam que, em média, cerca de 50% das mulheres desistem da entrega no decorrer do processo. “Normalmente ocorre após elas receberem suporte emocional, além do apoio da família ou do pai da criança, o que não havia antes.”
Atualmente, 139 crianças e adolescentes estão cadastrados para adoção no DF. Em contrapartida, há 538 pretendentes na fila de habilitados para recebê-las. Ou seja, há mais famílias dispostas a adotar do que “filhos” na lista de espera.
O candidato à adoção deve procurar a Defensoria Pública ou constituir advogado particular e ajuizar o processo de inscrição para adoção.
A pessoa deverá obrigatoriamente participar de um curso de preparação psicossocial para adoção e ser avaliado pela equipe técnica da Vara da Infância e Juventude. Caso o candidato tenha seu pedido deferido pelo Juiz, seu nome será inserido no Cadastro Local e Nacional de Adoção. Outras informações podem ser consultadas clicando aqui.
Relembre o caso de Maria Flor
Uma mulher de 37 anos apontada pela PCDF como mãe da recém-nascida Maria Flor foi identificada por equipes da 11ª Delegacia de Polícia (Núcleo Bandeirante) e autuada em flagrante pelo crime de abandono de incapaz. Em depoimento, ela contou ter outros cinco filhos, está desempregada e não teria como cuidar de mais uma criança.
A genitora de Maria Flor contou ter se arrependido e teria agido por desespero. Mesmo com remorso, não teve coragem de voltar para buscar a filha com medo de ser vista pelos vizinhos. O delegado-adjunto Bernardo de Mello, responsável pelo caso, informou que deve relatar o inquérito policial ao fórum criminal nos próximos dias.
Imagens mostram o momento em que a mulher leva o bebê e, depois, retorna sem a menina nos braços. Veja: