DF: mais de 5 mil crianças nascidas em 2021 não têm pai na certidão
Dados do Portal da Transparência do Registro Civil mostram grande ausência de figuras paternas nas certidões no DF; Planaltina lidera
atualizado
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Tainá* engravidou em meados de março. Aos 19 anos, já era mãe de Priscila*, 2 anos, e deu à luz Ana* em novembro, em um parto precoce. O genitor das meninas adiantou-se e deixou a família pouco antes do nascimento prematuro da caçula. “Quando vou a um lugar que precisa dos documentos dela, perguntam por que não tem o nome do pai [na certidão]. Às vezes, não sei nem responder”, lamenta a jovem. Ana é um dos 5.055 bebês nascidos no Distrito Federal em 2021 cujos pais não constam no registro civil.
“A ausência do pai delas é muito difícil, pois são duas. Para fazer qualquer coisa do dia a dia é complicado, afinal uma tem 2 anos e a outra apenas 1 mês de vida. É tudo sobrecarregado em cima de mim. Só dá pra fazer alguma coisa quando estão dormindo”, relata Tainá.
Dados levantados pelo Metrópoles no Portal da Transparência do Registro Civil – que reúne informações de cartórios Brasil afora – mostram que de 1º de janeiro a 25 de dezembro foram registradas 48.362 crianças no DF, e quase 10,5% delas não tiveram o mínimo contato com o genitor, nem mesmo por meio de um pedaço de papel plastificado, ou seja, os pequenos não têm o nome do pai em suas certidões de nascimento.
Tainá, a mãe das duas meninas, preocupa-se com a reação das pequenas a respeito da paternidade, ainda que Priscila tenha o nome do genitor nos papéis de identificação – o que não é o caso da caçula, Ana.
“Às vezes, me pego pensando: ‘E se ela me perguntar, como vou explicar a ela o porquê de ela não ter o nome do pai nos documentos?'”, questiona.
Para a mãe, a vida só toca um caminho relativamente normal porque os pais, com quem voltou a morar, “dão assistência em tudo”. “Sou muito feliz por ter eles dois por mim”, emociona-se.
Planaltina é líder em pais ausentes
Em Planaltina, está a maior parte de filhos sem pai. De 2.674 recém-nascidos registrados no ano na região administrativa (RA), apenas 71 têm paternidade definida. O número significa que quase 97,5% dos registros atestam, em letras garrafais, a ausência do genitor. O número choca, mas Célio Rodrigues, administrador da cidade, não duvida:
“A gente percebe, sim, visivelmente. Nos eventos, nas reuniões de escola, é nítido que há muitos filhos que não convivem com os pais. Que as mães atuam como pai e mãe”, comenta o gestor.
A título de comparação, no Plano Piloto, região administrativa que reúne as asas Sul e Norte, Vila Planalto, Cruzeiro, Noroeste e Sudoeste, foram 8.390 nascimentos, o maior índice dentre as RAs. Destas crianças, cerca de 1,6% não conta com a presença do pai – ou 131 bebês, em números absolutos. É a menor concentração de abandono no Distrito Federal (confira quadro comparativo abaixo).
Aspectos psicológicos e legais
Psicanalista e professora de pós-graduação em psicanálise do Centro Universitário de Brasília (Ceub), Ciomara Schneider explica que a função paterna – exercida não apenas pelo pai biológico ou por figuras masculinas – é fundamental na formação do indivíduo.
“A função paterna ajuda a criança a ter independência em relação à mãe. O pai traz a criança para essa noção de sociabilidade fora daquele circuito fechado que o bebê vivia. O pai divide tarefas, mas soma o amor”, argumenta. “O que fica como marca mesmo é a sensação de insegurança, de medo”, finaliza.
Conselheiro tutelar, advogado e representante do DF no Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares (FCNCT), Gustavo Henrique traça um paralelo entre a falta dos pais nas certidões e a ignorância, por parte do homem, acerca das obrigações que uma criança acarreta.
“A ausência de conhecimento sobre os direitos das crianças e dos adolescentes, e a baixa renda das famílias, na minha visão, são os principais fatores para o número tão grande de registros sem a inscrição do nome do genitor”, analisa.
Para Ericka Filipelli, titular da Secretaria da Mulher no DF, os números na RA VI refletem outras mazelas sociais. “Planaltina tem altos índices de violência doméstica e é uma área predominantemente rural, além da baixa instrução em geral. A única forma de mudar isso é pela educação, colocar o planejamento reprodutivo dentro da sala de aula. Meninas mais informadas serão adultas, que não aceitarão tais situações”, pondera a secretária.
“Às vezes eu imploro para ele ser pai”
Amanda* separou-se de Thiago há 7 anos, apenas um ano depois do nascimento de Fabrício*, hoje com 8 primaveras completas. Entre aparecimentos inesperados e ausências constantes, o genitor está sumido a quase um ano. Segundo a ex-companheira, o homem “fugiu” em dezembro de 2020, para não ser preso – e foi em um raro fim de semana na companhia do filho que se despediu.
“Às vezes eu sinto que estou implorando para que ele seja pai, sabe?”, desabafa a mulher.
O menino Fabrício é a prova viva de que ter o nome de um genitor na certidão não é o bastante. Para o advogado Rodrigo Fagundes, especialista em Direito Civil, a maior dificuldade para homens nestes momentos é a cabeça. “Às vezes o que pega mais é a falta de maturidade para entender a situação, para entender que não é algo opcional, que tem de estar ali até poder caminhar sozinho. Muitas vezes essa lógica é invertida”, comenta o especialista.
Fabrício tem na figura da mãe a figura paterna. As noções de família, para ele, englobam os avós, enquanto o conceito de lar resume-se à casa para onde Amanda voltou depois do sumiço de Thiago. “Ele canalizou o amor que não tinha do pai para ter com o avô. Na escola, quando tinha que fazer desenhos, ele desenhava a família com ‘mamãe, vovó e vovô’. Eu tento não ser invasiva, mas sei que ele sente falta”, pontua a mulher.
*Nomes fictícios, em função do pedido de sigilo das personagens.