DF: golpe do financiamento fácil impulsiona mercado paralelo de carros
Os meios mais utilizados pelos estelionatários são redes sociais, e-mail e SMS, mas também há anúncio em sites de classificados
atualizado
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Golpistas que antes tentavam enganar suas vítimas com a promessa de retirar a negativação dos nomes de serviços de proteção ao crédito inovaram. Agora, eles também buscam “clientes” entre pessoas que não devem na praça, mas encontram dificuldade de ter financiamentos aprovados por estarem inseridos no chamado perfil de risco de inadimplência. Os anúncios são tentadores: “Limpo seu nome e aumento seu score”. Tudo isso sem qualquer negociação com os credores e sem o pagamento das dívidas. O que parece bom demais para ser verdade é, de fato, pura enganação.
Tal prática criminosa é responsável por movimentar, no Distrito Federal, um mercado paralelo de automóveis que circulam à margem da lei. Os estelionatários divulgam “serviços” em faixas espalhadas pelas cidades e, sobretudo, na internet. Os meios mais utilizados são redes sociais, e-mail e SMS, mas ofertas em sites de classificados também são comuns. O Metrópoles telefonou para dois números que prometiam retirar o nome do SPC e aumentar a pontuação, o que, em tese, facilitaria a liberação de quem deseja parcelar a compra de automóveis.
O golpista se identificou como Rogério e disse ter acesso ao sistema do SPC. Segundo ele, a remoção do nome ocorreria em até 48 horas, contadas a partir do envio do comprovante de pagamento. “O comprovante é a garantia que você tem da prestação do serviço. Não tem nada de falcatrua nisso aí: o que a gente faz é mostrar para eles [o SPC] que você tem intenção de pagar. É como se fosse um sinal. No seu caso, você me faz a transferência de R$ 500 que o seu nome sai”, disse o falsário. Segundo ele, o valor cobrado varia de acordo com a dívida.
No outro caso, o anunciante, que se apresentou como Lucas, prometia melhorar a pontuação para liberar o financiamento de um veículo. Nesta modalidade, o golpe mira pessoas com nome limpo, mas que normalmente têm pedidos de financiamentos indeferidos, como autônomos, ambulantes e jovens com idades entre 18 e 20 anos.
“Nós criamos um crédito [falso] para que o banco analise seu perfil e veja que você cumpre os requisitos para aprovação. Depois, damos uma entrada fictícia, superfaturamos o valor do veículo para que o banco entenda que você está dando um bom valor de entrada. Assim, eles aprovam”, detalhou, por WhatsApp, sem saber que conversava com um jornalista.
Toda a transação, segundo ele, sairia por R$ 990, valor supostamente usado para elaborar a documentação do financiamento e a melhoria da reputação perante o banco.
Instituições fazem alerta
Tanto o SPC quanto o Serasa orientam o consumidor que a única maneira de limpar o próprio nome e melhorar a pontuação é negociando e pagando as dívidas. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informou desconhecer qualquer empresa ou serviço oferecido por terceiros capaz de melhorar o score de crédito dos clientes. “A única forma de manter e melhorar o score de crédito é ter um bom histórico de pagamentos, mantendo em dia os compromissos financeiros”.
Muitas denúncias de clientes que tentaram contratar esse tipo de serviço estão registradas no site Reclame Aqui, maior plataforma de queixas do país. No anúncio que motivou alguns dos registros no site, o golpista promete retirar, manualmente, o nome do contratante do SPC e do Serasa, além de aumentar o score para um número entre 900 e 970, num ranking que vai até 1000. Veja:
Estelionato
A delegada da Divisão de Falsificação e Defraudação (Difraudes) da Polícia Civil, Isabel Dávila, vê uma cadeia de envolvidos no esquema do aumento de score. O esquema quase sempre tem a compra de automóveis, cujos valores são menores e o controle mais frágil quando comparados, por exemplo, à liberação de dinheiro para a aquisição de um imóvel. “A impressão que tenho é que o vigarista quer dar o golpe no vigarista”, resume a investigadora.
Segundo a delegada, os golpistas agem de duas formas para melhorar a reputação dos clientes. Na primeira, a pessoa vai até a concessionária e não possui um comprovante de renda que demonstre condições de honrar as prestações. Vendedores e comissionários atuam de forma direta nesta circunstância. “Ele faz intermédio para fabricar documentos e enquadrar aquela pessoa ao perfil que a instituição financeira exige. Por cada documento emitido, a pessoa paga R$ 200″, disse a delegada sobre um caso em apuração.
O cliente, também parte no golpe, compra o carro parceladamente e não paga nenhuma prestação. A pessoa vende o automóvel por um valor bem abaixo do mercado e, teoricamente, quem compra fica responsável pelo financiamento, mas também não paga, porque o carro não está no nome dele. E esse veículo vai rodando até a financeira ir atrás de seus direitos e pedir uma busca e apreensão. Esse processo demora muito, pelo menos seis meses”, descreve Isabel Dávila.
A outra maneira inclui a contratação de alguém com o CPF limpo. A pessoa vai até a concessionária e retira o veículo, de forma 100% financiada. Os locais escolhidos são, geralmente, os com o menor controle sobre a análise de risco. Quem emprestou o nome para o golpe recebe entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil. Poucos dias depois, transfere o automóvel a quem o contratou, até que um terceiro, de boa fé, adquira o bem, sem saber da origem criminosa do veículo adquirido. “Várias financeiras não exigem nem comprovante de renda. Com a identidade, você consegue tirar um carro.”
Em muitos casos, o vendedor não apenas é conivente como estimula a prática. “Ele fala que aquele é um carro ‘finan’. É um termo que eles usam para automóveis que já sabem que vão rodar até se deteriorar ou até a financeira conseguir a apreensão. Não paga imposto, não paga multa”, explica a delegada.
Por mais que a prática delituosa seja evidente, os cartórios não podem se negar a transferir um veículo, mesmo que comprado no dia anterior.
Na OLX, os vendedores anunciam os “carros finan” sem a menor cerimônia. As publicações avisam, de antemão, a origem ilícita do veículo, pelos quais são cobrados valores bastante inferiores aos de mercado. Confira:
Crimes
Na maioria dos golpes, o crime mais comum é o de falsidade ideológica, com pena de 1 a 5 anos de prisão. Caso algum dos falsários cumpra a promessa de retirar o nome do cliente dos serviços de proteção ao crédito, ele poderá responder por inserção de informação falsa em banco de dados – caso atue de dentro da empresa –, ou por invasão de dispositivo eletrônico. Se ficar comprovado que várias pessoas agem em conjunto, respondem também pelo delito de organização criminosa.
“Numa investigação como essa, todo mundo responde: os vendedores, quem ofereceu, quem fabricou os documentos falsos e quem comprou o carro. A única forma de acabar é sendo rigoroso com a documentação”, ressalta a delegada.
Uma semana após conversar com os golpistas por telefone, a reportagem tentou ligar novamente para os números em diferentes horários do dia, mas as ligações sequer chamavam.