Depois de 38 anos, o 1º Dia das Mães juntos: “Queremos olhar o futuro”
O almoço em comemoração à data será realizado na casa da irmã de Sueli, que vive em Águas Claras. Apenas a família participará da celebração
atualizado
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O Dia das Mães deste ano tem um significado especial para Sueli Silva, de 56 anos. Depois de ter o filho, Ricardo Santos Araújo, tirado dos seus braços, ainda bebê, na frente do Hospital Regional do Gama (HRG), há 38 anos, eles se reencontraram no início deste mês. Agora, eles vão celebrar a data pela primeira vez juntos, em um apartamento da família, em Águas Claras.
“Eu imaginava, quando chegava em uma data como essa, eu sentia que tinha um vazio, um buraco negro no peito, estava faltando ele, estava faltando o Luís. Sofria sozinha, calada, para não deixar meus outros dois filhos tristes”, desabafou Sueli, que não parou de chorar em nenhum momento da entrevista.
“A única coisa que eu falei [para o Ricardo] foi ‘você é meu maior presente, estou me sentindo saindo da maternidade com meu bebê'”, prosseguiu.
Ricardo, depois de ressaltar a alegria de ter reencontrado a mãe, sugeriu que o passado fique para trás. “Não quero pensar no passado, quero pensar no que vou fazer agora, quero estar presente. Não queria olhar para o passado, porque eu quero olhar para o futuro”, disse Ricardo ao Metrópoles.
Em um ambiente familiar, o almoço foi organizado na casa da irmã de Sueli. Pelo fato de o apartamento de Sueli estar em reforma, eles não conseguiriam fazer o evento por lá. Ainda em função das obras no local, os dois dividiram a mesma cama de sábado para domingo.
“Quando acordei, vi que ela estava ao meu lado. Olhei e agradeci a Deus pela oportunidade de acordar ao lado dela no Dias das Mães. Abri os olhos, beijei ela bastante e disse que não ia parar de beijar”, revelou Ricardo.
Reencontro
Os dois finalmente se encontraram no primeiro domingo de maio, na cidade de Arara, na Paraíba. A história de Sueli foi revelada pelo Metrópoles. A aproximação só foi possível graças à investigação da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), que durou cerca de seis anos.
O reencontro ocorreu em João Pessoa, Paraíba, onde Ricardo vive, após uma exaustiva investigação comandada pelo delegado Murilo de Oliveira Freitas, da 14ª Delegacia de Polícia (Gama).
Vida sofrida
Sueli teve uma vida sofrida. Ela e quatro irmãos foram abandonados pelo pai, após a morte da mãe, e levados para um orfanato em Corumbá de Goiás (GO). Lá, quando tinha 13 anos, foi estuprada pelo filho da administradora do orfanato. Engravidou e foi mandada para a casa de uma família em Brasília, onde teve uma filha, que morreu alguns anos depois, de choque anafilático.
Conheceu um militar e engravidou de Ricardo, a quem deu o nome de Luís Miguel. A dona do orfanato, no entanto, acreditava que o pai era seu filho e decidiu que Sueli não poderia ficar com o menino.
Ela, porém, se concentra agora em viver este momento de reencontro com o filho. E Ricardo segue para Brasília sem pressa de voltar para João Pessoa. Comprou só a passagem de ida. Os irmãos brasilienses de Ricardo aguardam com ansiedade o encontro. “Eles ficam me perguntando como ele é, dizem que parece muito comigo. Mandaram vídeos para ele. Estão ansiosos. E todo mundo quer marcar alguma coisa. A agenda está cheia, até o delegado quer fazer um churrasco”, conta Sueli.
Sempre juntos
Ricardo diz que a família de ambos cresceu muito agora. Ele tinha apenas uma irmã, também adotada por Rafael e Vilany Araújo. A mãe adotiva morreu há seis meses. O pai está vivo e continua vivendo em Arara, no interior da Paraíba, onde Ricardo foi criado. “Eu quero, assim que puder, ir a Arara para agradecer pessoalmente ao senhor Rafael pela excelente criação dada a meu filho, pela educação que ele teve e pelo caráter formado”, afirma Sueli.
Segundo Ricardo, os pais adotivos sempre pensaram que a mãe da criança havia colocado, espontaneamente, o filho para adoção. “Eu fui criado sabendo que era adotado. Sabia que minha mãe biológica morava em um orfanato e não tinha condições de me criar, mas só isso”, conta ele. Ele diz que a mãe adotiva, certa vez, chegou a perguntar se ele não gostaria de procurar a mãe biológica.
“Mas eu não sabia como fazer. Tive medo e deixei o tempo passar”, explica. “É como se tivesse uma cortina numa porta. Tem a passagem, mas você não consegue atravessar”, avalia.
Medo ele teve também quando recebeu a primeira ligação do delegado, falando de uma suposta mãe biológica. “Foi um baque. E não estendi a conversa. Fiquei três dias sem dormir e pensava: ‘E se não for?’. Ele ligou outra vez, alguns dias depois, e detalhou bastante a história, falou do inquérito policial, mas eu ainda tinha a pergunta ‘e se não for?’”.
Suspense e DNA
Mesmo assustado, concordou em fazer o DNA. A partir daí foi uma tortura que durou sete dias. “Fiquei sem dormir, só imaginando. Mas fiquei na minha, não contei nada a ninguém, só para minha namorada”, relata.
Quando recebeu a mensagem do delegado, no dia 24 de abril deste ano, confirmando que era filho de Sueli, Ricardo estava em uma área afastada de Campina Grande, cidade distante cerca de 133 quilômetros de João Pessoa. “Fiquei mais nervoso, emocionado, minha mão suava muito, eu chorava”, diz.
O delegado avisou que havia passado seu telefone para Sueli. E não demorou nem 30 segundos para receber uma mensagem da mãe, querendo autorização para ligar. Ele pediu alguns minutos, mas ela não se conteve e ligou imediatamente. O primeiro contato foi rápido, ele disse estar saindo de uma loja e que ligaria depois. Quando retornou a ligação, porém, a conversa fluiu. Ficaram mais de uma hora na videoconferência.
“Senti uma pureza muito forte nela. Isso tem em mim também. Mas na hora eu disse a ela que não sabia o que falar. Ela me disse que não precisava. Que só deixasse ela ver minha orelha, minhas unhas, minha careca. Ela só queria me olhar”, conta, sorrindo. No mesmo dia, ainda se falaram por duas horas. Desde então, têm se comunicado diariamente.
Ricardo está feliz com a família que acaba de conhecer e diz não ter mágoa de nada. Conta que teve uma infância feliz no interior, brincando muito na rua, soltando pipa, fazendo carrinho de lata e muitas outras brincadeiras pouco comuns atualmente nas grandes cidades. Fala com carinho dos pais adotivos, mas parece estar pronto para ter também bons momentos com seus novos familiares.
Planos
Sueli, por sua vez, mudou todos os seus planos de vida. Ela, que nos últimos meses estava morando em Recife, Pernambuco, por causa do trabalho na Clínica Hospitalar Novo Nascer, que atende pessoas com transtornos emocionais e dependência, voltou para Brasília. A intenção era ir viver com o marido, que é francês, na França, mas isso já não está mais nos planos.
“Ele está voltando nos próximos dias para o Brasil”, explica. Sem saber, ela estava muito perto do filho, já que Recife está a 121 quilômetros de João Pessoa. Sem falar que ela chegou a cogitar se estabelecer na capital paraibana para desenvolver os projetos da clínica na região. Agora, entretanto, seus planos são curtir os filhos e se organizar para receber os netos assim que for possível. “Agora, é só felicidade”, completa.
Investigação de seis anos
A história de Sueli foi revelada pelo Metrópoles. A aproximação só foi possível graças à investigação da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), que durou cerca de seis anos.
Essa história começou em 1972. Então com 9 anos, órfã de mãe e abandonada pelo pai, Sueli e os quatro irmãos (três meninas e um garoto) foram levados pelo avô a um orfanato em Corumbá de Goiás (GO), cidade a 125 quilômetros de Brasília.
Em razão de os envolvidos na história já terem morrido ou estarem em idade muito avançada, sem condições de se defenderem, o Metrópoles optou por identificar apenas mãe e filho, além do delegado que investigou o caso.
Sueli conta que aos 13 anos teria sido estuprada pelo filho da administradora da instituição. A violência sexual ocorreu outras vezes. Ela tentou se matar ingerindo veneno para formiga. Pediu ajuda à mulher, que ignorou os abusos sofridos pela adolescente. Acabou grávida e enviada a Brasília para morar com um casal conhecido da dona do orfanato. Ficou no local até o nascimento da filha Juliana, registrada apenas sob o nome da mãe.
As duas permaneceram na capital. Sem ter a quem recorrer, Sueli disse que continuou a trabalhar para a dona do orfanato, que também seria proprietária de uma escola infantil no Guará. Mãe e filha continuaram a morar com o mesmo casal.
Em maio de 1980, Sueli conheceu um policial militar com que manteve um breve relacionamento. Na época, o homem estava de partida para o Canadá e não teria ficado sabendo que a namorada havia engravidado. “Foi tudo muito rápido. Tivemos um relacionamento de cerca de três meses. Não sabia mais como encontrá-lo, mas tinha certeza que queria ter e cuidar do meu filho”, disse Sueli.
De acordo com ela, a dona do orfanato não teria acreditado na história. Achava que a criança seria fruto de uma nova investida do filho dela. Por isso, teria ordenado ao casal que mantivesse Sueli trancada em casa até que o bebê nascesse. Em 9 de fevereiro de 1981, Luís Miguel veio ao mundo, no Hospital Regional do Gama (HRG).
Filho levado
Quando saiu da maternidade, conforme conta, teria sido recebida pelo casal com o qual morava e uma mulher que tinha um lenço amarrado na cabeça. Pediram que ela fosse ao orelhão e ligasse para a dona do orfanato. A conversa não foi nada amistosa: “Ela disse que eu devia entregar meu filho para adoção, já que não tinha condições de criá-lo. Caso contrário, ia mandar os meus irmãos para um abrigo de menores infratores”.
“Implorei, supliquei, mas ela não me deixava falar, bateu o telefone e, quando voltei em direção ao carro, em prantos, meu filho já não estava lá. A mulher que usava lenço no cabelo também desapareceu”, lembrou.
Fragilizada, ela permaneceu trabalhando e morando no mesmo local, ainda sob influência da dona do orfanato, por mais de 20 anos. Nesse período, Sueli se casou, teve outro filho, perdeu a filha mais velha após um choque anafilático e só conseguiu independência financeira em 2004, quando foi aprovada em um concurso público no Governo do Distrito Federal.
Revelação
Apenas em 2012, entretanto, ela se sentiu livre para procurar o filho. Naquele ano, a dona do orfanato morreu. Antes, muito debilitada, teria feito uma revelação a uma das irmãs de Sueli: o médico que fez o pré-natal de Luís Miguel poderia saber do paradeiro do bebê desaparecido. Na época, ela até conseguiu localizar o profissional. Questionado sobre o caso, porém, ele negou qualquer participação no sumiço do menor.
Com apenas o cartão do registro na maternidade do HRG e as poucas lembranças do filho, Sueli pensava em como Luís Miguel estaria, a altura a que haveria chegado, do que gostava ou se um dia poderia tocá-lo e ouvir a voz dele. Em todo esse tempo, a única informação que podia ajudá-la nas buscas era a de que o bebê havia nascido com uma uma anomalia chamada de sindactilia, quando dois dedos dos pés ou das mãos são grudados.
Ao Metrópoles, ela detalhou que, por muitos anos, foi convencida de que o bebê havia morrido. “A dona do orfanato em que cresci me dizia para eu parar de procurá-lo, pois, provavelmente, ele já estava morto. Mas sentia que não era verdade. Sabia que ele estava vivo. Orava todos os dias pela vida dele”, afirmou, emocionada.
Em 30 de julho de 2013, ela escreveu, à mão, uma carta enviada à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (MPF). No texto, Sueli explica o motivo de só procurar as autoridades após mais de 30 anos dos fatos: “Passei muito tempo paralisada em pequenos trilhos, acreditando que, mesmo impotente, deveria ter feito algo no dia. Gritar, pedir socorro. Acredito que a Justiça teria me ouvido. Mas estou certa de que vou encontrar meu filho, covardemente tirado de mim”.
No documento, ela escreveu em detalhes toda a sua história desde 1972. E, finalmente, foi ouvida. A denúncia deu origem a um inquérito instaurado no mesmo ano, na 14ª Delegacia de Polícia (Gama). Com base no relato, os policiais iniciaram uma investigação complexa, que mudaria não só a vida de Sueli, mas a do filho e a da equipe envolvida nas diligências.
Criatividade e persistência
Para solucionar o caso quase quatro décadas depois, os policiais tiveram que mergulhar na história de Sueli, conhecer os personagens que fizeram parte da vida dela, adotar técnicas diferenciadas de investigação, ter criatividade e, principalmente, persistência. Na época, documentos não eram digitalizados, e alguns envolvidos já haviam falecido ou se mudado do Distrito Federal, lembrou o delegado responsável pelo inquérito, Murilo de Oliveira Freitas.
“Encontramos salas inteiras abarrotadas de documentos. O prontuário de Sueli não foi localizado, desapareceu. Muitas vezes, não sabíamos o que procurar. Não tínhamos o nome em que a criança foi registrada ou até mesmo se a data de nascimento nessa certidão estaria correta”, explicou o delegado Murilo Freitas.
No ano passado, o médico responsável pelo parto foi ouvido pela Polícia Civil. Voltou a dizer que não tinha envolvimento e não se recordava bem do caso. Mas a mulher dele se lembrou de uma informação que foi fundamental para a conclusão da investigação. Disse que o porteiro do prédio onde eles moravam na época, na 103 Sul, conhecia a dona do orfanato no qual Sueli morou. Segundo a mulher, ele poderia ter pego e cuidado da criança.
Também disse aos investigadores o nome da mulher do porteiro e informou que ela teria sido professora em uma escola no Gama. “O que parecia ser uma boa pista nos colocou novamente diante de novas dificuldades. Não existia qualquer registro de funcionários no prédio referente aos anos de 1980 e 1983. O nome dado pelo médico estava incorreto”, explicou o delegado.
Os policiais recorreram à Secretaria de Educação em busca de algum dado que os pudesse levar até a professora. Mas, sem o nome completo da docente, as buscas foram frustradas. “Ninguém sabia se ela trabalhava em escola particular ou pública. Nesse momento, não tínhamos nem a certeza de que essa professora, de fato, existiu”, ressaltou o policial.
Postagem no Instagram
No final de 2018, entretanto, uma publicação no Instagram deu novo gás à investigação. Tratava-se de um texto de protesto em que familiares de uma mulher cobravam esclarecimentos sobre a morte dela, na cidade de Arara, na Paraíba. O nome batia com o que fora informado pela esposa do médico. Era a companheira do porteiro.
Com a nova pista, as investigações foram concentradas no cartório do município paraibano. Após apurações, os policiais encontraram a família do casal. Descobriram que eles tiveram dois filhos. Um deles, Ricardo Santos Araújo, com 38 anos. Os policiais apuraram, ainda, que a família residia em Brasília em 1981, data do parto de Luís Miguel.
Segundo os policiais, Ricardo e a irmã sabiam que eram adotados, mas não tinham conhecimento sobre suas mães biológicas. Acreditavam que haviam sido colocados de forma voluntária para adoção. Com fortes indícios de que Ricardo seria o bebê sequestrado na porta do Hospital Regional do Gama, entrevistaram-no por telefone.
“Foi uma ligação difícil. Era necessário uma sensibilidade ímpar. A princípio, ele não se mostrou fechado à possibilidade de a mãe biológica o procurar. Mas disse que não tinha interesse na história. Quatro dias depois, eu retornei e ele estava diferente. Afirmou que não conseguia dormir e queria entender o que aconteceu. Também confirmou que nasceu com sindactilia e operou ainda criança”, lembrou o delegado.
Caso Pedrinho
O caso é parecido com o de Pedro Júnior Rosalino Braule Pinto, Pedrinho, sequestrado em 1986 na maternidade do Hospital Santa Lúcia, na Asa Sul. Levado para Goiânia (GO), ele viveu 16 anos como filho de Vilma Martins Costa, com o nome de Osvaldo Martins Borges.
Simulando uma gravidez, Vilma sequestrou a criança para forçar o então companheiro, também Osvaldo Martins Borges, a se casar com ela. Ela acabou conseguindo seu objetivo. Ao ver a mulher supostamente grávida, Osvaldo deixou a família e criou Pedrinho com Vilma como se fosse seu filho legítimo.
Em 2002, os pais biológicos, que moram em Brasília, encontraram o menino. Ele se mudou para Brasília, mas nunca perdeu contato com Vilma, que chegou a ser condenada e cumprir pena em regime fechado. O caso inspirou o sucesso televisivo Senhora do Destino. Pedrinho virou advogado, casou-se, tem dois filhos e mora na capital do país