Delegado sobre morte de kalunga em pau-de-arara: “Culpa da vítima”
Kalunga Domingas de Castro morreu após saltar de um pau-de-arara que acreditava estar em chamas. Veículo era o único transporte público
atualizado
Compartilhar notícia
A Polícia Civil de Goiás concluiu o inquérito para investigar a morte da quilombola Domingas Fernando de Castro, aos 52 anos. A kalunga morreu após acidente em pau-de-arara na Chapada dos Veadeiros. Ela usava o veículo oferecido pela Prefeitura de Cavalcante como forma de se locomover no município goiano, quando se assustou com a fumaça que saía do transporte irregular e com gritos que avisaram “fogo”. A mulher acabou pulando da carroceria e se feriu gravemente.
O laudo cadavérico apontou que Domingas perdeu tanto sangue na queda que veio a óbito por uma anemia aguda pós-hemorrágica, causada pela grave lesão que sofreu. Apesar das condições de transporte, o delegado Haroldo Padovani Toffoli concluiu a investigação, na última sexta-feira (23/2), apontando que a vítima é a culpada pela própria morte, que ocorreu em novembro do ano passado.
“O resultado ocorreu por culpa exclusiva da vítima, de modo que a conclusão do presente caderno investigativo sem autoria definida é medida que se impõe”, define o delegado. Harold Padovani Toffoli conclui que a kalunga morreu porque pulou do veículo.
Na resolução do caso, o delegado destaca que o pau-de-arara é um meio de transporte usado há anos pelos quilombolas na região e que tem até o contrato com a prefeitura, por meio da Secretaria de Transportes. Ele também investigou que a fumaça foi um mecanismo natural do pau-de-arara “em razão da força empregada”.
“Quando passados mais ou menos uns cinco quilômetros do local de partida e em razão da subida da via, o caminhão, num mecanismo natural em razão da força empregada, soltou ar e, por isso, algumas pessoas que estavam na carroceria se assustaram e gritaram que o caminhão iria pegar fogo”.
O delegado ainda apontou a condição de precariedade do local em que Domingas ficou até a chegada do socorro, com os passageiros tentando amenizar o calor da quilombola. Para Haroldo Padovani Toffoli, não há qualquer relação de causalidade de ação humana com o resultado-morte.
Revolta
A família de Domingas está revoltada com o resultado das investigações. “Perdi um ente querido e ainda escuto que não houve crime, indignou-se a filha Lucineide Carvalho. “Estão querendo culpar ela de ter morrido”, comentou.
“Nós vamos correr atrás disso, não pode ficar impune”, afirmou Lucineide, que pretende contestar o pedido de engavetamento do caso da morte da mãe.
O Metrópoles questionou a Polícia Civil de Goiás sobre a conclusão do inquérito, mas não obteve resposta até a última atualização deste texto. Em nota, o Ministério Público de Goiás (MPG)O informou que recebeu o inquérito e que vai se manifestar nos autos no prazo legal.
Proibição de paus-de-arara
A morte da quilombola movimentou uma decisão do Ministério Público do estado, que pediu o fim dos caminhões como transporte público para as pessoas em Cavalcante.
Na decisão, o MPGO cobrou que os veículos oferecidos pela prefeitura tenham bancos em quantidade suficiente para todos os passageiros. Os bancos devem ter encosto e cinto de segurança. No caso de carroceria, a orientação é que tenha cobertura, barra de apoio para as mãos, proteção lateral e que evite o “esmagamento e a projeção de pessoas em caso de acidente”.
Pelo documento, os meios de transporte não poderão levar passageiros em pé, cargas junto aos passageiros nem que sejam veículos de carga. A promotora de Justiça Úrsula Catarina Fernandes destacou que é preocupante o modo em que são realizados os transportes da comunidade quilombola quando precisam se deslocar à zona urbana do município.
A promotora anexou, ainda, foto com o transporte de pessoas em um pau-de-arara. O registro com pessoas amontoadas e em pé na carroceria foi feito 13 dias após a morte de Domingas.
Morte em pau-de-arara
A quilombola Domingas Fernando de Castro morreu após sofrer um acidente em caminhão “pau-de-arara” na Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Ela foi levada já inconsciente ao hospital de Cavalcante, Domingas não resistiu aos ferimentos.
No momento do acidente, caminhão tinha ao menos 15 pessoas amontoadas, que subiam os morros de difícil acesso da comunidade Vão das Almas, em Cavalcante (GO). Segundo relatos, o transporte fazia uma subida íngreme e precisou forçar um pouco mais o motor, por isso a fumaça. Assustados, cinco pessoas pularam; quatro estão bem.
Após a tragédia, o socorro também teria demorado a chegar e foi feito sem um equipamento específico. De acordo com o boletim de ocorrência, registrado na Polícia Civil do município, um carro com tração 4 x 4 foi usado “devido à região ser de serra e de difícil acesso” para fazer o atendimento.
“Pegaram minha mãe e colocaram num banco após uma queda dessas”, disse a filha de Domingas, Lucineide. “Ela estava com a bacia, com fêmur quebrado, foi colocada no carro, sem maca, sem cuidado nenhum. Uma artéria rompeu e ela morreu antes de ter atendimento”, lamenta.
A reportagem teve acesso a um vídeo em que Domingas, minutos antes de morrer, está deitada no chão e implora por ajuda. Os colegas que estavam no carro seguram a mão dela e tentam reconfortá-la. Por respeito à família, as imagens não serão divulgadas.
“A morte dela foi puro descaso”, ressaltou o outro parente de Domingas, que preferiu não se identificar. “Tratam as pessoas como animais”, completou. Para ele, a quilombola só morreu por negligência do Estado com a comunidade Kalunga.
“Eles deixam os recursos bem longe da gente, o que é bom, que é recurso, que pode levar a gente a se desenvolver. A gente não tem acesso a um transporte legal”, indignou-se.
Quilombolas
Descendente de pessoas escravizadas que fugiram e montaram o quilombo Kalunga, no qual vivia, Domingas estava a caminho do centro de Cavalcante para sacar o dinheiro da aposentadoria e fazer compras. Atualmente, essa é a única forma de transporte coletivo que existe no local. O acidente também revela um lado aterrador do município, conhecido pelas paisagens paradisíacas. De difícil acesso para os turistas na região, o trajeto também faz parte da rotina de moradores que vivem nas comunidades.
“O pessoal fica tudo em pé”, detalhou uma pessoa da região que não quis se identificar. A tragédia com Domingas ocorreu em 1º de novembro, mas só foi divulgada na semana passada.
Com apenas 9.583 habitantes, mais de 90% da receita do município é de fora, sendo movimentado pelo turismo da região. Os dados estão no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“É comum que no final ou no início de cada mês passe um pau-de-arara buscando as pessoas nas comunidades para que sejam levadas a cidade e sacar dinheiro de auxílios governamentais”, contou outra pessoa da região ouvida pelo Metrópoles. “Aquilo é uma tragédia anunciada, mas muitas vezes se faz vista grossa porque é a única forma de acesso dos moradores”.
A reportagem apurou que atualmente não há outro meio de transporte coletivo sem ser o caminhão irregular. Veja imagens de pessoas nesse tipo de transporte:
As cenas são de agosto deste ano e se repetem todo mês. A voz de quem gravou foi alterada para evitar que a pessoa seja identificada. “Em pleno século 21, um pau-de-arara para subir a serra”, destaca a voz.
Kalunga
Kalunga era uma palavra ligada às suas crenças religiosas dos povos vindo do Congo e de Angola. No português brasileiro, calunga adotou outros sentidos, como “coisa pequena e insignificante”, conforme no documento elaborado pelo governo federal “Uma história do povo Kalunga”, publicado em 2001. O documento pode ser acessado neste link.
O termo também está presente na música popular brasileira e aparece na canção Yáyá Massemba, gravada pela cantora Maria Bethânia, com a frase: “Que noite mais funda calunga/ No porão de um navio negreiro/ Que viagem mais longa candonga”.
O Metrópoles questionou a Prefeitura de Cavalcante sobre as condições de transporte e aguarda resposta.