“Deixa o sonho de uma vida”, diz marido de consultora do Senado vítima da Covid
Marido de Fabiana Queiroz Damasceno escreveu carta em homenagem a ela, que ficou internada por 50 dias lutando contra a Covid-19
atualizado
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Vítima do novo coronavírus na manhã do último domingo (11/7), a consultora legislativa Fabiana Queiroz Damasceno, 46 anos, foi homenageada com uma carta escrita pelo marido, o jornalista Gabriel Garcia, nesta terça (13).
Fabiana estava internada há 50 dias no hospital DF Star para se tratar da infecção provocada pela Covid-19. “Linda, sorridente, cheia de virtude, ela partiu cedo, como se quisesse resolver logo as pendências da sua passagem. Após uma segunda parada cardíaca, seu grandioso coração pediu descanso. A menina doce, inteligente de um largo e sincero sorriso continuará espalhando amor, bondade e generosidade – agora em outras praias”, destacou Gabriel Garcia na carta.
Ao longo do texto, ele relembrou as experiências do casal, junto há noves anos, para deixar registrada toda a história que construíram. “Eu perdi o sonho de continuar ao lado da minha companheira de viagens, parceira intelectual, mulher altruísta, mas ela me deixa o sonho de uma vida”, relembra Gabriel.
Leia na íntegra:
“Minhas noites solitárias
Renato Russo traduzira, em um passado longínquo, o sentimento que invadiu a alma após o médico sentenciar que a paciente do leito 15 seria intubada em sua segunda noite na unidade de tratamento intensivo. Para o coração aturdido, as palavras soaram como um adeus precoce da inteligente, corajosa, astuta e carinhosa Fabiana Damasceno. Até parecia cocaína, mas era só tristeza.
Durante três dias sombrios, com o quarto iluminado à luz de um arsenal bélico de aparelhos de monitoramento cardíaco e de respiração, sem uma única fresta de sol, a porta adornada por dois carrinhos cinzentos de metal com o chamado “kit intubação”, agarrei-me ao pensamento do bravo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Acreditava que a combalida mulher estava perdendo batalhas, mas que silenciosamente voltaria a tempos melhores, vencendo a guerra.
A ausência da sua voz, calada pela bateria de remédios tranquilizantes, bombardeava pensamentos como uma blitzkrieg da Luftwaffe em cerco à Londres na Segunda Guerra Mundial. Chovia em minha cabeça desnorteada torpedeiros de medo, angústia e aflição.
Nas três semanas que se seguiram, o excesso de medicação rasgava as veias a todo tempo, o balé de enfermeiros, médicos e fisioterapeutas gerava engarrafamento no apertado ambiente e sua fisionomia permanecia abatida. Dias e noites se confundiam em perene escuridão, com a incerteza tocando a maçaneta a cada visita médica. Raras vezes, trazia o jaleco esbranquiçado um naco de conforto.
Em sua maioria, as notícias repisavam o sofrimento: aumento do acometimento do pulmão e da taxa de infecção, exames de sangue alterados, suspeitas de insuficiência cardíaca, embolia e trombose – descartadas posteriormente.
Sem reserva de força, ela continuava sedada a base de fármacos destinados a apagá-la. Era tão hercúlea a briga pela vida que permanecer acordada seria perfumaria nessa arena de dores, falta de ar e oxigenação capenga. Restava simplesmente prostrada, incapaz até de erguer-se para um gole de água nas pequenas garrafas trazidas pelos cordiais garçons do hospital, hidratando-se com gaze umedecida por longuíssimos cinco dias.
Nesse interminável calvário, o acompanhante sofre com o flagelo, mas apenas o acamado é capaz de descrever o peso da cruz de usar máscaras que apertam e sufocam o rosto, a tal ventilação não invasiva (VNI), máquina primordial para evitar a intubação, e o cateter de alto fluxo, descrito pelos especialistas como um carro a 300 km e o passageiro com a cabeça para fora da janela. No caso do tratamento contra o coronavírus, o rosto fica exposto ao vento em tempo integral, por semanas.
Em igual velocidade, brota na família a sensação de impotência, misturada com o medo de entrar para a estatística das mais de 530 mil vítimas no Brasil, em guerra barulhenta que deixa em ruína lares e sonhos. Na busca por consolo, todos se reúnem em orações, correntes e compaixão. Fé e esperança surgem com frequência nas rodas virtuais de conversa.
Somo-me, hoje, assim, à dor daqueles que perderam um filho, uma mãe, um pai, um tio, um marido, na crença da vacinação em massa. Como um atento espectador, inquilino de um hospital por 50 dias, aconselho a todos o ensinamento de Santo Agostinho: ame sem medida, valorize a vida. E, principalmente, respeite as regras sanitárias. Não sabemos como cada corpo reagirá ao vírus.
Para quem inicia a jornada contra essa cruel doença, paciência e perseverança incessantemente, na expectativa de progresso. Quando rarear a energia, sustente-se em amigos e familiares. E, a todo custo, afaste o desânimo: o psicológico é um aliado de primeira ordem, capaz de definir o rumo do tratamento.
Infelizmente, chegaram ao fim minhas noites solitárias, na fria companhia do monitor metálico e bastante cabeado que mede os sinais do adoentado. Consultora legislativa do Senado, goiana de nascente e Brasiliense por vocação, Fabi não resistiu ao retorno à UTI. Linda, sorridente, cheia de virtude, ela partiu cedo, como se quisesse resolver logo as pendências da sua passagem. Após uma segunda parada cardíaca, seu grandioso coração pediu descanso. A menina doce, inteligente de um largo e sincero sorriso continuará espalhando amor, bondade e generosidade – agora em outras praias.
Eu perdi o sonho de continuar ao lado da minha companheira de viagens, parceira intelectual, mulher altruísta, mas ela me deixa o sonho de uma vida. Não são as chagas que tomaram conta do seu corpinho que sufocarão seus ensinamentos. A partir de hoje, estarei aqui na terra para complementar a missão daquela mulher livre, de voz suave e gestos calmos, logo ela que não “me ensinou a te esquecer”.
Gabriel Garcia, um homem apaixonado”