Coronel da PMDF liga para o 190 e confessa ter agredido a esposa. Ouça
Oficial ligou para número de emergência e perguntou o que vítima deveria fazer. Sindicância sobre caso na PMDF iniciou quase 4 meses depois
atualizado
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Um coronel da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) que atuou na Coordenação de Assuntos Institucionais da Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) é alvo de sindicância na corporação por violência psicológica e patrimonial contra a ex-esposa, com quem se relacionou por 15 anos.
O oficial chegou a ligar para o telefone de emergência da Polícia Militar – o 190 – durante uma discussão entre os dois em casa, e dizer que agredia a então companheira. Ele também perguntou como deveria proceder e se poderia pedir à vítima que ligasse para a corporação. Em resposta, o atendente consentiu.
A reportagem também apurou que o comando da PMDF teve ciência do caso na mesma semana do ocorrido, mas só abriu sindicância contra o militar quase quatro meses depois. Agora, o procedimento de investigação aguarda conclusão do corregedor-geral da instituição, coronel Leonardo Siqueira dos Santos.
A ex-esposa do militar registrou boletim de ocorrência depois de o policial sair da casa em que os dois moravam, e a Justiça deferiu medidas protetivas de urgência em favor da vítima, com suspensão da posse e do porte de arma do oficial – restituídos posteriormente.
Nesta primeira reportagem, o Metrópoles omitirá o nome do investigado, para preservação da vítima e do filho do casal, que é menor de idade.
Atualmente, o oficial alvo da sindicância trabalha na Diretoria de Pagamento de Pessoal (DPP). No entanto, à época do ocorrido, em 20 de novembro de 2023, ele atuava no Centro de Comunicação Social (CCS) da PMDF.
Por volta das 20h30 daquela data, o casal teve uma discussão. Durante a briga, a vítima alertou o oficial, com um informativo distribuído pela própria Polícia Militar, de que ele avançava o “sinal amarelo” descrito pelo folheto. O folder detalhava comportamentos de alerta que podem escalar e configurar casos de violência doméstica.
Em seguida, “de forma aviltante”, segundo boletim de ocorrência registrado na 11ª Delegacia de Polícia (Núcleo Bandeirante), o policial discou para o 190, com o telefone no modo viva-voz, o que permitiu à vítima escutar a chamada.
Ouça a gravação:
Na sindicância que o investiga na PMDF, o coronel alegou que, pouco antes de fazer a ligação, a então esposa havia se aproximado e o agredido verbalmente diversas vezes enquanto ele assistia à televisão e que ela “insistia em manter a discussão”, a qual teria durado várias horas, segundo o oficial.
“Por diversas vezes, pedi que ela [se] afastasse e me deixasse em paz. Ao que ela dizia: ‘Isso é uma agressão, e você está cruzando a linha amarela da violência doméstica’. Até que peguei o telefone e disse: ‘Já que você está dizendo que eu a estou agredindo, vou ligar para o 190. E fiz a ligação’”, declarou em oitiva na sindicância.
Poucos dias depois do episódio, o coronel teve uma conversa sobre o assunto com o comando-geral da PMDF.
Despacho em gabinete
Em 23 de novembro, o coronel enviou uma mensagem ao celular da vítima e disse que teve uma conversa em particular com a atual comandante-geral da PMDF, coronel Ana Paula Barros Habka. Os dois se formaram juntos na 5ª Turma da Academia de Polícia Militar de Brasília (APMB) – cujos componentes poderão entrar para a reserva remunerada a partir de agosto próximo, devido aos 30 anos de serviço.
À época do ocorrido, Ana Paula era subcomandante-geral da corporação, e a cúpula da PMDF havia recebido informações sobre a ligação do oficial para o 190 por meio do Centro de Inteligência (CI). A coronel foi nomeada para chefiar a tropa em 9 de janeiro de 2024. A cerimônia oficial de passagem do comando a ela ocorreu em 7 de fevereiro.
Em 10 de abril, a coronel prestou declarações no âmbito de um Procedimento de Investigação Preliminar (PIP) aberto a pedido da 3ª Promotoria de Justiça Militar do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Ana Paula detalhou que, no dia seguinte ao episódio do telefonema, chamou o oficial ao gabinete para despachar, e os dois conversaram sobre o assunto.
Ela relatou que: “[…] a grande preocupação desta declarante era com a pessoa do Cel. [coronel] e de sua família, [e com] o que poderia ser feito para ajudá-los nesse momento de possível crise conjugal; [e] que o Cel. [menção ao nome do coronel] informou que a situação estava sendo resolvida e que iria sair de casa”.
Ainda segundo a declaração no PIP, o subordinado contou a ela que a ligação para o 190 “havia sido feita em momento de forte emoção” e que “não foi uma decisão sensata”. A coronel acrescentou que o oficial “apresentava estado emocional equilibrado [no dia da conversa no gabinete] e não queria desenvolver o assunto”. “Acredito que pela vergonha do ocorrido”, completou Ana Paula durante oitiva.
Entre as mensagens enviadas pelo coronel à então esposa, ele chegou a dizer que “não foi aberto nenhum processo apuratório” contra ele na PMDF. A respeito disso, a atual comandante-geral afirmou que esse “não foi um assunto tratado na conversa” com ele, pois “as providências cabíveis seriam adotadas pelo Centro de Inteligência, que informaria tudo por relatório ao DCC [Departamento de Controle e Correição]”.
Também durante a declaração do PIP, Ana Paula destacou que “de maneira alguma […] fez ingerência para abertura ou não de procedimento apuratório, pois as providências deveriam fluir pelo canal competente e [ter] seus devidos desdobramentos”.
Ao ser ouvido na sindicância da PMDF, o coronel confirmou ter sido questionado sobre a ligação ao 190 no dia da conversa no gabinete, mas a pergunta da comandante se deu pelo fato de um ser subordinado ao outro e “não tinha caráter inquisitório”, segundo ele.
“[O coronel declarou que] […] era uma preocupação de superior para subordinado; que, até aquele momento, imaginava que não tinha sido instaurado procedimento apuratório; e que, por seu conhecimento na atividade […], sabia que o Centro de Inteligência já deveria estar tratando do assunto”, segundo processo da sindicância acessado pela reportagem.
Tratamento de saúde
Em 15 de dezembro de 2023, o militar saiu da casa em que morava com a companheira e teria ficado com mais bens do que o acordado pelos advogados das partes, de acordo com depoimento da vítima à Polícia Civil. Uma semana depois, ela registrou ocorrência contra o oficial por violência doméstica na 11ª DP e pediu medidas protetivas, deferidas pela Justiça.
O casal vivia em união estável. À época da denúncia, a vítima passava pela última das 16 sessões de radioterapia, devido a um câncer de mama descoberto em fevereiro de 2022, com recidiva em 2023 e necessidade de submissão a cirurgia. Após ser diagnosticada com a doença, a então esposa do militar recebeu uma indenização do seguro de vida que cobria sinistro por enfermidade grave.
Contudo, ela alegou que o valor do seguro foi transferido para uma aplicação em nome do coronel, que cuidava das finanças do casal e, por isso, ela não tinha acesso à conta, segundo boletim de ocorrência. Além disso, apesar de constar como dependente do marido no plano de saúde da PMDF, não teria recebido o aval dele para fazer o tratamento oncológico pelo convênio, devido aos custos da coparticipação.
O assunto foi abordado na sindicância da PMDF, e o militar contestou as acusações. O coronel disse que nunca negou acesso à quimioterapia para a ex-esposa pelo convênio da PMDF, mas que ele e a então companheira teriam conversado sobre o uso do plano do casal para os procedimentos de saúde necessários e que o serviço particular cobriu “todo o tratamento dela”, exceto um exame que precisou ser enviado aos Estados Unidos.
“[…] Para me inteirar sobre como poderia realizar esse tratamento pelo sistema de saúde da PMDF, procurei o Cel. [menção a outro coronel da corporação], especialista em contratos de Saúde da PMDF, que me disse que seria mais vantajoso fazer uso do plano de saúde, em vez de pagar a coparticipação em um tratamento tão caro quanto esse”, justificou o oficial no processo aberto pela corporação contra ele.
Sobre as aplicações financeiras, o militar declarou que ele e a vítima tinham investimentos individuais, que cada um gerenciava a própria conta, que um assessor bancário dava sugestões de aplicações a serem feitas e que o casal decidia sobre elas em comum acordo. O coronel também argumentou que mudou a senha da conta conjunta devido a um bloqueio bancário determinado pela Justiça contra ele.
Conclusão da sindicância
Os relatos e demais documentos juntados como provas foram analisados pela coronel Jucilene Garcez Pires, encarregada da sindicância. A conclusão e as considerações da militar foram apresentadas em 15 de maio. O documento assinado por ela avalia que não houve prática de crime militar por parte do alvo da apuração.
No entanto, a oficial entendeu que “há indícios de cometimento de crimes comuns tipificados na Lei 11.340/2006 [Lei Maria da Penha], art. 7º, [incisos] II e IV (violência psicológica e patrimonial, conforme procedimento [do] TJDFT [Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios] […] em andamento”.
“Conseguinte, não evidenciando dúvida para o cometimento de transgressão disciplinar do sindicado Cel. QOPM [do Quadro de Oficiais Policiais Militares] [menção ao nome do coronel], já que, com suas ações, deram ensejo a procedimentos com repercussão judicial e administrativo ‘extramuros’, incidindo e consubstanciando a transgressão […] do Regulamento Disciplinar do Exército, aplicado à PMDF por força do Decreto GDF [Governo do Distrito Federal] nº 23.317, de 25 de outubro de 2002”, completou Jucilene.
Antes, porém, a encarregada da sindicância destacou que a vítima estava “em um momento muito delicado de sua vida, no qual qualquer um, [ao] estar passível de ser acometido por uma doença de tamanha seriedade [e] de riscos à vida [um câncer], […] esperava uma postura diferente do seu companheiro, contudo, não foi isso que ocorreu, conforme os relatos colhidos”.
“As injúrias, os constrangimentos e as ofensas proferidas pelo sindicado [o militar] a sua esposa, presenciadas [a encarregada menciona duas testemunhas], bem como em conversas de WhatsApp juntadas destes, além do mais, presenciar o seu companheiro ligar para o número de emergência 190, como forma de intimidação, e assumir estar praticando violência […] à vítima são fatos que causam enormes prejuízos à saúde psicológica, trazendo danos emocionais imensos a uma pessoa”, enfatizou a coronel Jucilene.
A responsável por conduzir a sindicância acrescentou que, quatro das cinco testemunhas apresentadas pelo coronel durante as audiências corresponderam a “investidas do sindicado de demonstrar que os comportamentos da sra. [vítima] eram excessivos, descabidos e difamatórios”.
Além disso, a encarregada descartou que o coronel tenha sofrido violência verbal, com base no relato dessas testemunhas, e entendeu que ele mudou a senha de uma conta conjunta do casal “de forma arbitrária”.
Veja:
Cronologia de tramitação interna
Atualmente, o processo contra o oficial ainda tramita na Justiça. Em 9 de janeiro de 2024, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar do Núcleo Bandeirante suspendeu o porte e a posse de arma de fogo do coronel. No dia seguinte, a PMDF emitiu informe sobre o cumprimento dessa ordem judicial.
Em 18 de janeiro, o corregedor-geral da PMDF, coronel Leonardo Siqueira dos Santos, enviou à Seção de Procedimentos Disciplinares (SPD) e ao Gabinete do Departamento de Controle e Correição um despacho que declarava sem efeito um documento de mesmo tipo anterior, que determinava a instauração de Procedimento de Investigação Preliminar contra o oficial.
No despacho mais recente, Leonardo detalhou que, “após revisão criteriosa e em conformidade com a Instrução Normativa do Departamento de Controle e Correição (DCC) nº 15/2018, conclui-se que a situação em análise se enquadra mais adequadamente nos parâmetros de uma sindicância”.
No entanto, o início do processo investigativo, de fato, dependeria da chancela do comando-geral da corporação, por meio de uma Portaria de Instauração de Sindicância. Um documento para esse fim e datado de 24 de janeiro de 2024 chegou ao gabinete da cúpula da PMDF, mas só foi assinado eletronicamente, segundo consta no rodapé do arquivo, às 15h58 de 12 de março de 2024. O prazo para apuração dos fatos era de 30 dias.
Em 13 de março, a coronel Jucilene Garcez Pires foi designada pelo DCC como encarregada da sindicância, com início oficial dos trabalhos naquele dia. Os depoimentos dos envolvidos e das respectivas testemunhas, inclusive, só ficaram registrados em datas a partir de então, segundo os documentos acessados pelo Metrópoles.
Em 17 de abril último, a defesa do militar pediu à PMDF a revogação da medida protetiva que suspendeu o porte de arma do investigado, após decisão judicial nesse sentido e com aval da vítima.
Promotoria de Justiça Militar
Na mesma data de assinatura eletrônica da sindicância pelo comando-geral, em 12 de março último, a vítima havia registrado no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios uma notícia de fato “motivada por dúvidas sobre o progresso da investigação” dentro da PMDF, de acordo com o Procedimento de Investigação Preliminar aberto pela 3ª Promotoria de Justiça Militar. O departamento deu 10 dias para a corporação enviar resposta sobre os questionamentos apresentados.
Por determinação do corregedor-geral da Polícia Militar, o chefe do Comando de Policiamento de Trânsito (CPTran), coronel Edvã de Oliveira Sousa, ficou encarregado de concluir as instruções do PIP em 20 dias, prorrogáveis por mais 10 e apenas uma vez.
Edvã ouviu a vítima, em 10 de abril de 2024; Ana Paula Habka (16/4); e o policial denunciado (22/4). Após analisar as informações obtidas por meio do PIP, o encarregado concluiu que “os procedimentos investigativos foram conduzidos de acordo com os protocolos estabelecidos, apesar das preocupações iniciais manifestadas pela sra. [vítima]”.
“Do apurado à tramitação da informação, a instauração da sindicância e o transcurso das investigações seguiram os trâmites legais apropriados e não emergiram evidências de falhas ou negligências que pudessem comprometer a integridade das investigações”, destacou o oficial Edvã.
O encarregado também recomendou pelo arquivamento do processo, “visto que encontra-se em curso, andamento, procedimento administrativo disciplinar, Sindicância nº […], o qual, devido à complexidade e [ao] alcance, concluirá a apuração dos fatos que envolvem o presente PIP com a consistência e a assertividade esperada”.
Normas da corporação
Ao menos dois conjuntos de regras da PMDF abordam os protocolos de adoção necessária face à descoberta de casos de violência cometidos por policiais militares: a Instrução Normativa nº 15/2018, do DCC, e a Portaria nº 1.161/2021, do Estado-Maior.
A primeira estabelece que “logo que tiver conhecimento de violência contra pessoa em situação de vulnerabilidade [‘mulheres, crianças, adolescentes e idosos’] por parte policial militar, o comandante, chefe ou diretor, entre outras medidas, deverá:
- “Instaurar procedimento administrativo correspondente, ou encaminhar a autoridade competente, para tal finalidade;
- Adotar ações necessárias para a preservação da integridade das vítimas, determinando quaisquer atos de proteção elencados nesta instrução normativa, isolada ou cumulativamente, inclusive impor medidas de natureza cautelar, na forma da legislação;
- Comunicar ao DCC, bem como às demais autoridades, sobre as providências adotadas;
- Manter seu efetivo informado sobre as medidas contidas nesta instrução normativa; e
- Determinar à Seção de Justiça e Disciplina sobre as medidas a serem adotadas, inclusive as que importarem urgência, com registro estatístico de tudo, para fins de alimentar ações de prevenção e orientação do efetivo.”
A segunda destaca que, “ao tomar conhecimento [do caso], o comandante da respectiva OPM [Organização Policial-Militar] deverá, imediata e cautelarmente, suspender o porte de arma de fogo do policial militar que for preso em flagrante delito ou figurar como autor em fatos que envolvam violência doméstica e/ou familiar”.
Além disso, o fato de a circunstância descrita ocorrer fora do horário de expediente administrativo “não obsta que o comandante de OPM adote as providências que a função lhe determina”, com prazo de 30 dias para a penalidade e possibilidade de prorrogação, conversão em medida ordinária ou revalidação do porte de arma de fogo.
Posicionamento
Acerca da tramitação da sindicância detalhada pela reportagem e das datas informadas na cronologia, a PMDF informou que foi notificada judicialmente dos fatos em 11 de janeiro de 2024. “Imediatamente, foram adotadas todas as medidas protocolares e cautelares necessárias ao caso e previstas em norma”, comunicou a corporação.
“Em 18 de janeiro de 2024, foi determinada a instauração de sindicância para investigar o caso. Esse processo seguiu sua tramitação regular e, posteriormente, foi firmado e publicado em tempo razoável, especialmente considerando a necessidade de se garantir a ampla defesa e o contraditório”, completou a PMDF.