Confundidos com golpistas, pesquisadores da UnB suspendem estudo sobre Covid
Nos grupos de WhatsApp e Facebook, eles foram chamados de criminosos, falsários e estelionatários. Até a polícia foi acionada por moradores
atualizado
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Pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) que faziam um estudo sobre infecções causadas pelo novo coronavírus foram confundidos com estelionatários por moradores da Cidade Estrutural e tiveram de suspender suas atividades depois que um dos líderes comunitários publicou, erroneamente, um alerta em grupos de WhatsApp afirmando que eles eram golpistas disfarçados.
A fake news sobre os pesquisadores foi publicada, inicialmente, em 27 de maio, o primeiro dia da coleta de dados na região. A história se espalhou rapidamente, e os moradores começaram a desconfiar dos profissionais da UnB. Nos grupos de WhatsApp e Facebook, eles foram chamados de criminosos, golpistas, falsários e estelionatários.
“Na Cidade Estrutural DF tem um casal que tá indo de casa em casa para tirar o seu sangue. Esse casal tá dizendo que é para uma pesquisa da UnB sobre a Covid-19. Todos os dias esse casal troca de carro. Cuidado, morador da Estrutural, ainda não sabemos se essa pesquisa é verdadeira. São dois estojos de sangue que eles tiram. Até agora, já foram nas casas de alguns líderes comunitários. Fique ligeiro, meu povo, ou então o seu sangue será tirado!”, desinforma uma das postagens.
Os integrantes do grupo de estudos permaneceram na Estrutural até o dia 30 de maio (entre quinta e domingo). Na segunda-feira seguinte (31/5), moradores foram até a delegacia e abriram um boletim de ocorrência contra os profissionais da UnB.
Depois, o líder comunitário chegou a admitir que errou ao fazer a postagem.
Veja publicações que chamam pesquisadores de golpistas nas redes sociais:
Uma das coordenadoras da pesquisa, a doutora Ana Isabel Passarella, explica que o boato prejudicou o andamento do projeto. Com a fake news disseminada desde o primeiro dia, a adesão dos participantes foi baixa. “Todos passaram a não nos receber ou passaram a nos tratar de forma ríspida. Além da suspensão, um dos nossos pesquisadores, que teve o rosto divulgado, pediu, com razão, para sair da equipe”, contou a coordenadora.
Mal-entendido
Segundo apurou o Metrópoles, toda a história foi um mal-entendido. O boato nasceu quando o morador Alexandre Bedran foi um dos sorteados para participar do estudo. Ao ser abordado pela equipe de pesquisadores para que participasse da pesquisa, o homem se mostrou incomodado por desconhecer o levantamento e pediu para gravar um vídeo.
Na gravação, o líder comunitário, apesar de falar inicialmente que o estudo é da UnB, passa a cobrar do Governo do Distrito Federal (GDF) a divulgação da pesquisa nos meios de comunicação. No mesmo dia, Alexandre questionou o trabalho dos pesquisadores nas redes sociais.
Veja o vídeo:
Áudio alerta população para golpe que não existe:
A reportagem entrou em contato com Alexandre, que admitiu ter cometido um erro e afirmou estar chateado com o equívoco. “Se não tivesse acontecido essa confusão, eu faria questão de divulgar para a comunidade”, afirmou. Ele conta que buscou se informar no GDF, mas que a resposta do governo local foi orientá-lo a procurar a ajuda da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), por isso o morador teria publicado o alerta.
O farmacêutico João Marcos Torres (foto de destaque), responsável pela coleta de sangue na pesquisa, e que teve o rosto divulgado como golpista no vídeo, foi quem saiu da equipe por medo de retaliação. “Espalharam o boato de que nós queríamos roubar crianças. Como profissional e como pai, isso me deixou profundamente triste, uma sensação horrível”, desabafou.
Ao Metrópoles, os pesquisadores informaram que devem se encontrar com líderes da comunidade para explicar melhor o que é o estudo e os benefícios que a pesquisa pode trazer à sociedade. Outros objetivos são mostrar como é a metodologia e pedir a participação dos moradores.
O estudo
A pesquisa, coordenada pelo professor Wildo Navegantes e feita pelo grupo Zarics, busca descobrir a proporção entre pessoas que já foram infectadas com o vírus da Covid-19 e a cobertura vacinal da tríplice viral no DF. Na Estrutural, o objetivo é coletar 1.100 amostras, em casas escolhidas aleatoriamente.
Para verificar os anticorpos, é preciso retirar 10 ml de sangue de cada participante, em dois tubos de 5 ml cada. Os dados de cada participante são mantidos em sigilo. João Marcos explica que a população não precisa ter medo, pois o sangue é retirado para análise e não se inocula nenhuma substância no organismo do participante.
As três pessoas que compõem a equipe que vai a campo são o motorista da UnB, a profissional responsável pelo questionário e o profissional que faz a coleta do sangue.
Os pesquisadores da UnB têm esperança de que com o esclarecimento do mal-entendido eles possam voltar a realizar o estudo na região. “Achamos que nossas descobertas podem trazer benefícios reais para a sociedade”, disse Ana Passarella.
Questionado sobre a orientação dada ao morador da Estrutural, para que ele procurasse a polícia, o Governo do Distrito Federal (GDF) afirmou que o conselho foi dado no contexto de que um morador teria se sentido lesado. O GDF declarou que apoia toda e qualquer pesquisa que possa trazer benefícios para a sociedade.
Veja a resposta do GDF na íntegra:
“O GDF, quando informado, apoia iniciativas que beneficiem a população. No entanto, não é de sua responsabilidade divulgar em veículos de comunicação a realização de pesquisas promovidas por terceiros. Para evitar equívocos ou aplicação de golpes, o governo orienta aos moradores a solicitar a identificação dos pesquisadores. Por isso, em caso de dúvida quanto à veracidade do fato, o cidadão, conforme orientação via WhatsApp, deve buscar ajuda da Polícia Civil, para evitar prejuízos ou constrangimentos.
Em nenhum momento houve a intenção deliberada de taxar os estudiosos de criminosos, até porque o GDF considera fundamental o trabalho desenvolvido por pesquisadores.
A resposta levou em consideração as próprias dúvidas do morador em questão, principalmente as relatadas no vídeo. Sobre a pesquisa, o governo entende que todo estudo elaborado para beneficiar a população é bem-vindo, pois contribui para o desenvolvimento de tecnologias e o bem-estar das pessoas.”
A Universidade de Brasília (UnB) reiterou que o grupo de pesquisa está ligado à instituição de ensino e disponibilizou telefones para a população entrar em contato em caso de dúvidas.
Veja a resposta da UnB na íntegra:
“O grupo de pesquisa Zarics, coordenado pelo professor Wildo Navegantes de Araújo, é ligado à Universidade de Brasília. Os estudos realizados na Cidade Estrutural têm como um dos objetivos verificar a prevalência de infecções por Covid-19 na comunidade local.
Na última semana, teve início a fase de visitas a domicílios, em um processo previsto no projeto de pesquisa e amparado pelo comitê de ética em pesquisa. Caso algum morador tenha dúvida sobre os procedimentos, é possível acionar a equipe pelos telefones 3107-0051 ou 99444-6569.
Aproveitamos para reiterar a importância da ciência para o desenvolvimento do país, em especial neste momento tão adverso, em que a saída para a crise sanitária passa necessariamente por avaliações e políticas que considerem evidências científicas.”