Como a Lei do SIG vai abrir a porta para a desconstrução da Brasília tombada
Urbanistas da cidade temem que a flexibilização no uso do setor crie precedente para que o mesmo seja feito em outras áreas do Plano Piloto
atualizado
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O Governo do Distrito Federal (GDF) prepara-se para, nos próximos dias, aprovar junto à Câmara Legislativa (CLDF) um projeto de lei complementar que abrirá uma porta para a desconfiguração de Brasília como foi planejada e construída. A proposta do Plano Piloto rendeu à cidade reconhecimento em todo o mundo e o título de patrimônio cultural da humanidade. Mas esta concepção está ameaçada. O Executivo local empenha-se em alterar, o mais brevemente possível, as normas de gabarito do Setor de Indústrias Gráficas, a chamada Lei do SIG.
A discussão deve entrar na pauta da CLDF na próxima semana, embora o GDF ainda não tenha sequer apresentado um plano que avalie o impacto no trânsito, uma das grandes preocupações relacionadas às mudanças.
Na prática, a medida significa a ampliação do uso dos terrenos no SIG, com a previsão de aumento de ocupação das construções. Originalmente, o setor foi idealizado para abrigar gráficas, mas ali são autorizadas também atividades bancárias, de serviços financeiros e de radiodifusão, além de pequenos comércios e serviços que apoiam esses segmentos.
Por fazer parte do Plano Piloto, o SIG leva o selo de área tombada. Por isso, a iniciativa é tão temerária. Ao alterar as regras de ocupação do setor e de altura das edificações, o GDF inaugura oficialmente a possibilidade de que a mesma ação se repita em qualquer um dos outros locais centrais de Brasília. Não seria, portanto, inusitado imaginar que, daqui a alguns anos, as quadras residenciais ganhassem nova configuração, abrigando prédios muito mais altos, quem sabe até arranha-céus, de acordo com a conveniência dos gestores de turno.
Consequências
“O tombamento e toda a legislação que o protege têm de ser intocáveis. Da forma como estão fazendo, atingem pontos sensíveis da concepção original da cidade, sempre tendo como foco os especuladores e não a qualidade de vida da população”, alerta o arquiteto Carlos Magalhães. Ele convida os brasilienses a uma reflexão. “Pensem comigo: Brasília é, mundialmente, conhecida pela sua concepção. Tudo foi planejado nos mínimos detalhes. Quando se muda essa concepção, como querem fazer no SIG, tudo sofre consequências.”
Magalhães fala do alto da autoridade dos que participaram desde a gênese da construção da capital federal, dividindo a missão com o genial Oscar Niemeyer – de quem, além de parceiro de prancheta, era genro.
E quando o tema é a preservação de um patrimônio histórico, não há conflito de gerações. O professor de projetos de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Cláudio Villar de Queiroz diz que a intenção do governo em afrouxar as normas de ocupação do SIG cria um precedente perigoso para outras áreas tombadas da cidade.
“O mais importante é que se respeite a escala de proporção do projeto original. Imagina se, daqui a pouco, resolvem fazer a mesma coisa na Asa Sul e na Asa Norte. Vai virar uma bagunça”, considera. Na opinião do docente, “se não houver uma intervenção na proposta, o Plano Piloto vai virar uma Águas Claras”. “Está na hora de os setores de defesa da cidade se mobilizarem para frear a tentativa de flexibilização do SIG.”
Em pareceres técnicos elaborados pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), o governo prevê o aumento do potencial construtivo do SIG, passando de 12 metros para 15 metros de altura, o que permitirá a construção de mais um pavimento nas edificações do setor. Assim, prédios no local poderão abrigar até cinco andares. Em 7 de agosto de 2009, o então governador do DF, José Roberto Arruda, publicou o Decreto nº 30.665, retificando as normas de edificação, uso e gabarito (NGB 52/88) do SIG, o que não tem qualquer valor legal, pois decretos não podem alterar o potencial construtivo de lotes.
De qualquer forma, no documento ficou estabelecido que prédios na região poderiam ostentar cobertura para construção de caixa-d’água, casa de máquinas e utilização para atividades de lazer e cultura. A ocupação ficou limitada a 40% da área total da cobertura.
O que está sendo proposto agora é a utilização de 100% do espaço, configurando aumento da volumetria dos prédios, ou seja, de ocupação. Além disso, as alterações que o governo tenta emplacar no Parlamento local também comportam a ampliação do uso da área, abrindo a possibilidade para a instalação de bares, restaurantes, academias, escritórios de advocacia. São mais de 200 novas atividades.
O tombo no Tombo
O SIG faz parte do Conjunto Urbanístico de Brasília inscrito no Livro do Tombo Histórico em 14 de março de 1990, sob o número 532. O tombamento foi regulamentado pela Portaria 314 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de outubro de 1992 e detalhado pela Portaria 166, publicada pelo mesmo órgão, já em 2016.
O registro é o escudo de Brasília, garantido por lei. “Minha impressão é que, suavizando aos poucos, aqui e ali, o governo começa a permitir exceções que podem acarretar em perdas irrecuperáveis à cidade, que detém o título de Patrimônio Cultural da Humanidade”, afirma Aldo Paviani, referência em planejamento urbano e professor emérito da UnB.
Para a integrante do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), órgão vinculado à UNESCO, Mônica Veríssimo, as autoridades se valem da tática de fasear as alterações, o que vai ocasionar grandes transformações com efeitos irreparáveis na capital federal: “As mudanças de destinação estão sendo feitas de maneira picada, o que não evitará a desconfiguração do tombamento da cidade”. É isso que está em jogo.
O outro lado
Em nota, a Seduh alega que o afrouxamento nas normas “vai permitir o desenvolvimento da área”. “A flexibilização dos usos dos lotes do SIG vinha sendo discutida no âmbito do Plano de Preservação do Conjunto Urbano de Brasília (PPCUB) há muitos anos e já havia consenso sobre esta matéria. Além disso, ampliação dos usos dos lotes vai permitir o desenvolvimento da área com mais comércio, prestação de serviços e, consequentemente, geração de empregos.”
Ainda de acordo com a pasta, estudos de impactos na água, esgoto, drenagem pluvial, iluminação pública e carga de energia foram feitos, mas, em relação ao que avalia as consequências na mobilidade, isso segue outro rito. “Com relação ao impacto no trânsito, há um projeto de renovação urbana em andamento. Todos os estudos constam do processo.”