Casos de violência contra idosos aumentam, em um ano, 102% no DF
Números foram obtidos com exclusividade pelo Metrópoles, em um levantamento feito com base em boletins de ocorrência da PCDF
atualizado
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Celebra-se, neste 1º de outubro, o Dia do Idoso. A data, criada com o objetivo de valorizar a vida de pessoas acima dos 60 anos, infelizmente traz números estarrecedores quando o assunto é a segurança dessa parcela da população.
De janeiro a agosto deste ano, 2.650 boletins de ocorrência foram registrados na Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), tendo idosos como vítimas de violência física, psicológica, patrimonial, abandono e até homicídio. É um aumento de 102,4%, em comparação ao mesmo período de 2019, quando 1.309 casos foram contabilizados.
Se os registros de 2019 já eram assustadores, com uma média de 165,25 por mês, em janeiro deste ano as estatísticas sinalizavam que 2020 não seria um ano fácil para essa parcela da população no DF. Nos primeiros oito meses, não houve uma pausa sequer no crescimento da violência. Ou seja, o aumento dos ataques aos idosos veio antes mesmo das agruras do isolamento forçado pela pandemia do novo coronavírus. E chegou ao ápice com 473 casos em junho.
Confira os dados:
Casos em áreas nobres e na periferia
O números não respeitam endereço ou classe social. Eis a prova: houve 651 registros de violência no Plano Piloto neste ano, área nobre do DF – onde a renda domiciliar gira em torno dos R$ 15 mil por mês, segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD). Em Taguatinga, o número de boletins de ocorrência registrado foi de 391.
Foi numa região nobre da capital, o Jardim Botânico, onde ocorreu um dos casos mais graves registrados pela PCDF em 2020. Em 4 de junho, por volta das 13h, os investigadores da Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, Orientação Sexual e da Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin) flagraram três idosos, de 88, 74 e 63 anos, em situação desumana.
Um homem mantinha a mãe, o irmão e uma mulher, que teria sido funcionária da família durante grande parte da vida, trancados dentro de casa, em “ambiente insalubre, com forte odor de urina e sujeira”, como consta no registro policial. Enquanto o suspeito vivia em uma casa maior, de dois andares, as três vítimas eram mantidas em outra edificação, no mesmo terreno, porém, infinitamente menor, com camas sujas e mal cuidadas.
Uma das vítimas dormia na cozinha, em um colchão, que estava em péssimo estado de conservação quando os policiais da Decrin chegaram. A cama do irmão do acusado de cometer maus-tratos era coberta com uma lona azul. Geladeira e panelas estavam vazias. Porém, era no cartão de uma das vítimas que o homem ia às compras e mantinha sua despensa abastecida.
As vítimas foram resgatadas com vida e encaminhadas para instituições, onde permanecem até hoje. O suspeito, um corretor de imóveis de 65 anos, chegou a ser detido, mas pagou fiança e acabou solto.
De acordo com a delegada chefe da Decrin, Ângela Maria Santos, o Estatuto do Idoso precisa urgentemente de uma reforma. “Temos penas muito baixas, onde a autoridade policial ou o Judiciário e o Ministério Público, muitas vezes se veem de pés e mão atados do ponto de vista criminal. Como é hoje, que os crimes são suscetíveis à fiança, pois a grande maioria deles é considerada de pequeno potencial ofensivo, quando não cabe, muitas vezes, um pedido de prisão preventiva”, diz.
Duas das vítimas dessa ocorrência fazem parte dos 51,7% de casos do tipo registrados no DF neste ano. É essa a porcentagem de mulheres idosas vítimas de maus-tratos na capital federal. Os homens, como o irmão do suspeito citado no caso acima, representam 48,3% das vítimas no total de ocorrências de violência registradas contra a faixa etária.
“Precisamos que a medida protetiva de urgência seja estabelecida nos moldes da Lei Maria da Penha, onde o delegado já manda o requerimento direto para o Judiciário, num prazo estipulado como a Maria da Penha. E que o juiz tenha o mesmo prazo, para que ele possa decidir pelo, por exemplo, afastamento do agressor do lar, suspensão do porte de arma. Isso é de extrema urgência para que a gente possa combater de forma eficaz a violência contra o idoso”, frisa a delegada.
De acordo com ela, o crime contra o idoso se assemelha muito ao de violência contra a mulher, onde a vítima, que está dentro de casa, acaba silenciada. “A cultura ocidental de cuidado com o idoso acaba, por muitas vezes, entranhando-se à violência psicológica, ao impedir que a vítima tome as próprias decisões, quando ela é absolutamente capaz disso. A partir do momento em que esse idoso começa a ser excluído, é um sinal de alerta. É a porta de entrada para outras agressões, inclusive patrimoniais”, explica a chefe da Decrin.
Central do Idoso
Na tentativa de garantir que o estatuto seja respeitado e que nenhum morador do DF em idade avançada tenha seus direitos ameaçados ou violados, foi criada a Central Judicial do Idoso. O serviço conta com orientação e atendimento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e da Defensoria Pública do Distrito Federal.
O objetivo da central é oferecer uma rede de apoio aos cidadãos idosos na esfera da Justiça. Quando o caso demanda a esfera criminal, a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) é acionada.
Bianca Cobucci, defensora pública do DF, explica como funciona a rede. “A central atua de uma forma especializada, com o papel de impulsionar a rede. A ouvidoria do GDF encaminha o caso para a ouvidoria da Defensoria, que, por sua vez, a encaminha à ouvidoria da central”, detalha.
“Nós também trabalhamos de forma preventiva. Se identificarmos que um idoso está inserido num contexto familiar violento, a gente se antecipa, faz uma busca ativa e aciona a rede”, explica Bianca.
Em tempos de pandemia, quando por recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) as pessoas têm ficado mais em casa, inclusive em horário de trabalho, a Defensoria Pública do DF criou o Conexão 60+, promovendo uma escuta ativa dos idosos.
No projeto, que tende a continuar mesmo com a chegada da vacina contra a Covid-19, há acompanhamento sistemático, feito por profissionais, semanalmente, com registro da evolução dos casos para identificar se os idosos estão inseridos em contexto familiar saudável.
“A maioria dos casos de violência acontece dentro de casa, onde a pessoa deveria se sentir segura. É ali que ela é abusada. Muitos filhos ou responsáveis legais pelo idoso retêm o cartão bancário da vítima, quando é ela, muitas vezes, que sustenta financeiramente a família. Interditam”, detalha a defensora pública.
O fator afetivo é extremamente importante na hora de definir quem terá a curatela do idoso, se necessário. Quando comprovado que não há condições para o cuidado – de ordem financeira ou até mesmo emocional –, o caso pode ser encaminhado à Justiça, que avaliará uma série de quesitos até chegar a uma decisão. Se ficar comprovada qualquer probabilidade de ineficácia no cuidado demandado, a responsabilidade sobre a pessoa idosa pode ser transferida para o Estado, sem penalização aos parentes.
Outro caso que ficou conhecido nacionalmente, também ocorrido neste ano, foi o de uma idosa de 69 anos, mantida em condições precárias, em Taguatinga. Após receber uma denúncia, os agentes da Decrin flagraram a vítima dentro de casa. Ela estava desnutrida, sem dentes e com várias feridas pelo corpo. Um dos machucados, nas costas, deixava o pulmão da mulher à mostra, de tão profundo (veja abaixo).
A denúncia partiu de um médico do Núcleo de Atendimento Domiciliar, do Hospital Regional de Taguatinga (HRT). Durante uma das visitas, o profissional se deparou com as cenas, descritas pelos investigadores da delegacia especializada como “deploráveis”.
Aos investigadores, a filha da idosa teria assumido que usava, mensalmente, os R$ 3,9 mil da aposentadoria da mãe em benefício próprio. Ela justificou que a vítima se alimentava por meio de sonda e, por isso, não tinha gastos pessoais. A filha foi presa, mas pagou fiança de R$ 2,5 mil e acabou liberada.
A idosa, servidora aposentada da Secretaria de Educação, vinha sofrendo com o agravamento de sua condição de saúde por conta de um acidente automobilístico ocorrido há 20 anos. A vítima ficou em estado vegetativo por uma década, sob a responsabilidade da única filha.
Após ser resgatada, a mulher idosa foi levada às pressas para o Hospital Regional de Taguatinga (HRT), onde acabou falecendo poucas horas depois de dar entrada.
Os três idosos retirados da situação de vulnerabilidade a qual estavam inseridos no Jardim Botânico hoje vivem em instituições de longa permanência, onde são alimentados corretamente e recebem, além de afeto, atendimento médico quando necessário.
A cuidadora da família, uma das vítimas do corretor de imóveis que a maltratava, vive atualmente a melhor fase da vida. “Ela, que tanto cuidou dos outros, hoje é cuidada. Agora, é ela quem recebe atenção, é alimentada e respeitada. Essa história teve um final feliz”, conta Ângela Santos, a delegada chefe da Decrin.
Denuncie
Caso tenha informações sobre maus-tratos à pessoa idosa no DF, acione os seguintes órgãos:
GDF: 162
Ouvidoria da Defensoria Pública: 2196-4600
Direitos Humanos: Disque 100
Polícia Civil do DF: 197