Casamento, gravidez, viagens… Coronavírus destruiu vidas e sonhos no DF
Por trás dos números dos boletins diários do GDF, há histórias que emocionam, como a da mãe que pediu para a filha adiantar o casamento
atualizado
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Além de impactar o sistema de saúde do Distrito Federal e provocar estragos na economia, a pandemia do novo coronavírus vem alterando a vida e destruindo os sonhos de muitas pessoas. Por trás dos dados de cada boletim divulgado pela Secretaria de Saúde, há histórias emocionantes de pacientes que perderam a batalha contra a Covid-19.
O Metrópoles conversou com parentes de vítimas da doença e conta como o novo coronavírus anulou planos de viagens, casamentos e o desejo de ter filhos.
O enfermeiro Geovani Comochena, 36 anos, não resistiu ao vírus e faleceu em 5 de abril. Nos últimos 12 anos, ele esteve ao lado de sua companheira, Regiane Gomes, 32. O casal (foto em destaque) morava junto e pretendia oficializar a união em cartório – no máximo, até 2021. “Falava com ele que queria uma festa na praia, que poderia ser lá no Maranhão, na mesma cerimônia de um irmão que também vai se casar”, relata a viúva.
Regiane fala com carinho do estado nordestino não só pelo fato de ter nascido e crescido na cidade de Estreito, às margens do Rio Tocantins, mas também por se tratar do lugar que conheceu o grande amor da vida dela. “Ele foi para lá, recém-formado em Pato Branco (PR). O hospital precisava de enfermeiros e ele viu uma boa oportunidade para começar a trabalhar. Um ano depois, a gente se conheceu”, conta.
A afinidade do casal foi tamanha que, no mesmo ano, a dupla passou a dividir o mesmo teto. Após a demissão de Geovani do hospital do município, Regiane decidiu acompanhá-lo nos empregos que ele conseguiu no interior do Paraná. O Abrigo dos Excepcionais de Ceilândia foi o último local de trabalho do enfermeiro antes de ele ser infectado e morrer.
Comochena se encontrou na profissão justamente atendendo pessoas que precisam de cuidados mais específicos. “O Geovani não gostava de hospital. Ajudar pacientes, que ele chamava de filhos, era uma realização”, diz Regiane.
Veja fotos de Geovani Comochena e Regiane:
Sonho de ser pai
Regiane revela que Geovani era paciente e carinhoso, virtudes que ela enxergou como essenciais para realizar o sonho de ter um filho com o parceiro. “Cheguei a fazer exames no começo do ano e estava com alterações hormonais. Precisava fazer outras avaliações, mas como ele acabou internado, adiei.”
Ainda em choque com a perda repentina do companheiro, Regiane não definiu se continuará em Brasília. “Talvez tenha que mudar. Aqui, tudo me lembra ele. Ainda me pego tentando me enganar, achando que o Geovani vai voltar.”
Casamento adiantado
Outra família que precisará se reconstruir é a de Celina Xavier Gontijo, a 27ª vítima da Covid-19 no DF. Aposentada, a professora de 63 anos dedicou 25 deles a ensinar crianças, além de trabalhar no Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais (CEEDV). “Minha mãe era apaixonada pela educação. Ela se sentiu muito realizada principalmente no trabalho com os cegos”, lembra a filha Rebecca Gontijo, 33.
Perto de se aposentar, o que aconteceu em 2019, Celina decidiu fazer o que mais gostava: viajar. Foi à Europa, ao nordeste. Conheceu também Espírito Santo e Mato Grosso. “Ela chegava em casa, passava uma semana e já saía de novo.”
A rotina de Celina, no entanto, não se resumia a passear pelo Brasil e pelo mundo. Segundo Rebecca, a mãe praticava muita atividade física e fazia questão de sempre estar perto de quem amava.
“Minha mãe gostava de todo mundo na casa dela no fim semana. Natal também só podia ser lá. Ela fazia a melhor rabanada e o salpicão mais gostoso”, recorda-se Rebecca com carinho.
A filha da docente aposentada conta com emoção um episódio que ficará marcado para o resto de sua vida. Ela e o então noivo haviam marcado casamento para agosto deste ano. “Minha mãe disse que eu só sairia de casa casada. Diante dessa condição imposta por ela, no dia 15 de janeiro resolvemos mudar tudo e acabamos casando em fevereiro”, relata Rebecca.
A antecipação da cerimônia possibilitou a realização de um dos sonhos de Celina – ela queria ver a filha mais nova se casar. “Foi Deus quem fez isso acontecer”, resume Rebecca.
Ainda de luto, a família tenta se inspirar no exemplo da própria Celina para voltar a sorrir. “Minhã mãe podia ter o problema que fosse, mas não deixava transparecer. A alegria era sua principal característica. Temos de seguir o exemplo dela”, comenta.
Não verá os netos crescerem
A 35ª morte confirmada pela Secretaria de Saúde por Covid-19 destruiu sonhos da família de João Lima da Silva, 68. Nascido na pequena Jardim do Seridó, no Rio Grande do Norte, veio para o DF em busca de melhores condições. Aqui, construiu família no Riacho Fundo I.
Conforme lembra a filha do aposentado, Thais Vieira da Silva, 42, o pai era muito querido pela vizinhança. “Todas as pessoas vieram aqui em casa para prestar homenagem. Ele ajudava todo mundo.”
Após 35 anos trabalhando como cabista – profissional que instala e repara cabos telefônicos –, João buscava descansar. Ficar com os netos e acompanhar o crescimento deles era o seu passatempo predileto. “As crianças chegavam aqui e ele ficava com elas o tempo todo. Fazia tudo para agradá-las”, diz Thais.
Com a ausência do patriarca, a família ainda tenta digerir a tristeza. “A casa parece que ficou maior. Eu e minha mãe estamos sofrendo muito.”
Embora conste nos relatórios do GDF como morte por coronavírus, a filha da vítima diz que os primeiros exames deram negativo para a doença, como revelou a coluna Grande Angular em reportagem publicada nessa sexta-feira (07/05). A Secretaria de Saúde realizará novos exames para confirmar o diagnóstico.
10 anos juntos
“Perdi os dois homens da minha vida. Se eu pudesse pedir três coisas, seriam: para que as pessoas se cuidassem, se respeitassem e tivessem consideração com o próximo.” O desabafo é de Márcia Cristina dos Santos, 50, esposa do sargento da Polícia Militar José Romildo Pereira, que morreu em 2 de abril, e filha de Benedito dos Santos, que veio a óbito dois dias depois. Ambos foram vítimas da Covid-19.
Ouça o depoimento dela:
O coronavírus entrou na casa de Márcia, no Gama, em um momento planejado para ser o mais feliz de sua vida.
Os pais dela vieram a Brasília em 12 de março e ficariam na cidade até maio. Os aposentados Adalgiza Gonçalves, 86, e Benedito, 84, saíram de Uraí (PR) para visitar a filha e o genro.
A grande expectativa era a aposentadoria de José Romildo. O casal aproveitaria a fase para fazer diversas viagens em família com o objetivo de comemorar. À época, o Brasil tinha poucos casos da doença, o cenário estava aparentemente controlado, mas tudo mudou rapidamente.
No dia 18/03, o pai de Márcia foi o primeiro a apresentar os sintomas. “Ele começou a ficar muito cansado e esquecido”, conta.
Quatro dias depois, em 22 de março, o esposo de Márcia teve febre. Ela e o sargento chegaram a ir ao hospital – e o diagnóstico foi gripe alérgica.
Em 26 de março, a situação do militar se agravou e ele foi internado com indícios de pneumonia e quadro semelhante aos pacientes infectados com coronavírus. O tratamento foi no Hospital Maria Auxiliadora, no Gama.
No mesmo dia, Benedito dos Santos piorou e foi encaminhado ao Hospital Regional da Asa Norte (Hran).
Em 2 de abril, Márcia soube da morte do companheiro por conhecidos. “Eu não sabia que ele tinha morrido e as pessoas estavam prestando condolências”, disse. Dois dias depois, o pai dela perdeu a luta contra o novo coronavírus.
Márcia, que também acabou contaminada, está recuperada da doença, mas não dos efeitos que a Covid-19 provocou em sua família. “É um pesadelo do qual não acordei ainda. Às vezes, acordo à noite e procuro pelo meu marido na cama. Íamos comemorar 10 anos de casados”, desabafa.
Casos no DF
De acordo com o mais recente boletim da Secretaria de Saúde, o DF tem 2,576 casos confirmados do novo coronavírus, conforme balanço oficial divulgado na noite desse sábado (09/05). Desse total, 165 pessoas estão hospitalizadas.
Do total de infectados, 1,454 se recuperaram, de acordo com estatística do governo local. A Secretaria de Saúde considera como recuperados aqueles pacientes que tiveram os primeiros sintomas há mais de 14 dias e não estão hospitalizados.