Capital às escuras. Iluminação precária favorece crimes e acidentes
Em se tratando de oferta de energia, cidades ricas e carentes enfrentam o mesmo transtorno. Problema chega a desvalorizar algumas regiões
atualizado
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A noite cai e Patrícia Alves Pinheiro aperta o passo para chegar em casa. Moradora da QNP 32 de Ceilândia Norte e com duas crianças pequenas no colo, a vendedora de 42 anos reclama da escuridão que torna a rua onde mora mais perigosa. “Por aqui, saímos sem saber se vamos voltar. É escuro e a bandidagem se aproveita”. Apesar do breu se apresentar como um convite à criminalidade, Patrícia diz contar com a sorte. “Nunca fui assaltada”, relata aliviada.
Patrícia não está sozinha em sua queixa. Pelos quatro cantos do Distrito Federal, multiplicam-se reclamações sobre a precária iluminação pública, transtorno que atinge desde regiões administrativas mais nobres a cidades pobres.
Para elaborar esta reportagem da série DF na Real, o Metrópoles percorreu mais de 10 pontos da capital carentes de postes de energia elétrica. Plano Piloto, Universidade de Brasília (UnB), Riacho Fundo II, Núcleo Bandeirante, Ceilândia e Taguatinga são algumas localidades onde não é preciso andar muito para dar de cara com o breu.
Ao todo, são 307 mil postes de luz espalhados pelo DF. Numericamente, parece muito. No entanto, conversando com pedestres, motoristas e comerciantes percebe-se que o serviço não chegou a diversas áreas urbanizadas.
A falta de iluminação não contribui somente para o aumento de práticas criminosas. Condutores no trânsito também ficam mais vulneráveis a acidentes automobilísticos provocados pela baixa visibilidade das vias. Já quem apostou o sonho da casa própria nesses lugares, reclama da desvalorização dos imóveis.
O protesto de quem vive às escuras ganha corpo quando chega a conta de energia elétrica, pois, desde desde 2002, a fatura vem com a adição da Contribuição de Iluminação Pública (CIP), taxa destinada justamente ao financiamento de serviços voltados a assegurar o direito à iluminação pública.
Fator de prevenção
Para o especialista em segurança pública Nelson Gonçalves, a iluminação constitui “fator essencial na prevenção criminal”. “É comprovado que a falta de luz contribui diretamente para a incidência de delitos. É fator importantíssimo e condicional para a ocorrência do crime ou para que este seja evitado”, destaca.
Mas não basta estar acesa: é preciso iluminar os locais adequados. Aí é que entra a parceria entre órgãos públicos, que serão capazes de prover recursos e definir onde os recursos deverão ser mais bem aplicados
Nelson Gonçalves, especialista em segurança pública
A Secretaria da Segurança Pública e da Paz Social do DF, por sua vez, informa realizar, mensalmente, estudos de “mancha criminal” em todas as regiões administrativas, com o objetivo de canalizar as ações das forças de segurança. Os documentos apontam dia, hora e local em que cada crime ocorre com mais frequência.
De acordo com a pasta, a partir desse levantamento, é possível direcionar “articuladores territoriais” a fim de analisar características do ambiente e possíveis desordens públicas, sociais e físicas que possam “impactar na criminalidade ou até mesmo criar condições para o avanço de crimes: “Entre elas, via mal iluminada”.
Em estudo encomendado pela Universidade de Brasília (UnB) à SSP, em abril de 2018, a pasta trouxe números que levaram a administração do centro de ensino a investir em infraestrutura dentro do próprio campus.
O Diagnóstico da Segurança na UnB, como foi intitulada a pesquisa, recomendou aos administradores a troca de postes de iluminação altos por outros mais baixos, como uma das ações estratégicas para garantir a segurança dos estudantes. Do total de entrevistados, 48,4% dos alunos disseram temer assaltos nas dependências da UnB e 73,9% apresentaram o mesmo receio no entorno da universidade.
Após o estudo, a UnB garante ter sido possível adotar medidas nesse sentido, como a recuperação de 100 postes de iluminação no campus Darcy Ribeiro. Segundo a universidade, recursos de uma emenda parlamentar permitiram, também, a substituição de 30 lâmpadas de LED nas vias de ligação entre a L2 e L3 Norte, gerando “queda de 16,8% na quantidade de crimes”.
Medo
Apesar do investimento, a realidade apontada pelos estudantes conflita com os relatos dos alunos. Todas as noites, o mestrando em matemática Kelvin John Anjos, 25 anos, precisa fazer um dos trajetos considerados como temerários, o da Colina. Em meio à escuridão do trecho, vem o medo. “É perigoso. Eu não fui vítima diretamente, mas outros amigos meus que passaram pela Colina já foram assaltados”, conta.
O receio de Kelvin não é mero alarde. O lugar é visto como um dos pontos de consumo de drogas, inclusive em plena luz do dia, conforme mostrou reportagem do Metrópoles. Na Colina, também, que o corpo do estudante Jiwago de Henrique Jesus Miranda, 33, foi encontrado – após o universitário ser assassinado por Mateus Rosa dos Santos, 19, devido a uma dívida de R$ 300 referente à venda de drogas.
A sensação de insegurança levou Kelvin a tomar uma atitude: não faz o percurso sozinho. Agora, ele atravessa o caminho na presença dos amigos e colegas de curso. “A gente costuma se reunir e combinar o horário em que vamos sair”, conta.
Trânsito
Para levar o cachorro para passear durante a noite, Davi Stênio Miranda Lopes, 56, pede ajuda e companhia de seu filho, João Victor Neves Miranda, de 21 anos. Juntos, vão da Quadra 416, na Asa Sul, ao mercado do comércio.
Morador da região há 10 anos, o autônomo assegura ter muita história para contar sobre os problemas gerados pela escuridão. “Aqui na Asa Sul a iluminação é precária. As pessoas não saem de casa por causa disso, com medo de serem assaltadas. Eu já presenciei até mesmo alguns assaltos por causa da falta de iluminação”, denuncia.
No mesmo trecho, Guilherme Santiago, 23, quase foi atropelado quando atravessava pela faixa de pedestres para ir até a faculdade onde estuda, no Iesb. “Não sei se o motorista estava bêbado, se não prestou atenção ou outro motivo. O fato é que aqui é escuro, talvez isso tenha contribuído”, ressalta.
Ciclista e praticante da modalidade desde 2013, Marlone Campos Silvério diz ter perdido o controle da bicicleta após passar por um buraco na rua. “Não vi o desnível na ciclovia, a bike travou e fui parar longe. O resultado dessa ‘brincadeira’ foi um cotovelo ralado só, pelo menos”, lembra o servidor público.
Também de noite, outro ciclista não teve a mesma sorte. Em 2017, o doutorando em física pela UnB Arlon Fernando da Silva, 29, foi assassinado no perímetro da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), onde cambaleou até cair no canteiro central entre as pistas S1 e N1, em frente à sede do Poder Legislativo e a poucos metros do Palácio do Buriti, onde despacha o governador.
Depois de cair, o estudante ainda rastejou por quase 30 metros, em busca de socorro. Mas, à noite, em um lugar pouquíssimo iluminado, muitos motoristas não o viram.
Jarbas Wexley, 39, é outro a apertar o passo no trajeto entre a empresa onde trabalha e a parada de ônibus, localizada em frente ao Setor de Diversões Norte (Conic). “Não temos segurança nenhuma”, protesta.
Cidade nova, velhos problemas
Quem passa pelo Noroeste ainda se depara com as obras a todo vapor. No entanto, à medida que os brasilienses chegam para residir no local, o setor começa a se mostrar despreparado para receber os novos moradores, pelo menos em termos de oferta de luz elétrica.
Felipe Andrei Moura, 38, se frustrou quando notou os problemas estruturais do bairro, incluindo a baixa instalação de postes de energia elétrica. “A iluminação no Noroeste é muito carente: tem bolsões escuros que chegam a dar medo de andar à noite. O próprio [cabeamento do] poste da Companhia Energética de Brasília (CEB), que deveria ser enterrado, está à mostra”, aponta.
Cidades esquecidas
Bem distante do Noroeste, Marta Custódio, 80, lembra com alegria do dia em que o condomínio onde mora, o Pôr do Sol, em Ceilândia, recebeu os primeiros postes de energia elétrica. Com 11 anos de idade, o trecho segue sem asfalto, porém iluminado, mas não a contento, como explicou a aposentada. “De nada adianta colocar um poste e, quando a luz queima, ninguém aparece para consertar”, reclama.
No Riacho Fundo II, os moradores também têm queixas a fazer. Antônio de Melo, 53, diz que os postes até funcionam, mas muitos apresentam problemas nas lentes. “Aqui até que é arrumadinho, mas nas entrequadras muitas lentes estão embaçadas. Então, apesar de o poste ficar aceso, não ilumina nada. Falta manutenção”, pontua.
Outro lado
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Infraestrutura e Serviços Públicos (Sinesp) garantiu realizar manutenção periódica por meio de um planejamento baseado na demanda de novos setores e solicitações realizadas pelo serviço de ouvidoria da Secretaria Adjunta das Cidades e das administrações regionais. “Assim que concluído o planejamento, é realizado o projeto. Com o orçamento assegurado, a Secretaria demanda a CEB para execução dos serviços”, informou, em nota.
No mesmo texto, ressaltou desenvolver projetos de modernização dos novos pontos de iluminação com base nos chamados e nas informações fornecidas pela Secretaria da Segurança Pública em parceria com os Conselhos Comunitários de Segurança.
Questionada sobre as reclamações dos brasilienses quanto aos problemas apontados nas diferentes RAs do DF, a pasta afirmou que executa vistoria “em todas as regiões administrativas para a substituição de lâmpadas apagadas”. Até o momento, desde o início do ano, foram realizados cerca de 700 reparos.
A UnB, por sua vez, informou investir em uma série de ações para a melhoria da segurança no campus. De acordo com a assessoria de imprensa da universidade, entre as medidas tomadas, estão a recuperação de 100 postes de iluminação no campus Darcy Ribeiro, poda de mato alto, recolhimento de entulho, e instalação de 350 câmeras e de uma central de videomonitoramento.