Brasilienses acusam golpista de cobrar 252 dólares para prever câncer
Thiago Moreira afirma ser autor de um estudo revolucionário que detecta possibilidade da doença pela análise de um fio de cabelo
atualizado
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Ana* é recém-aposentada e tem um histórico preocupante de câncer na família. Pelo lado materno, tanto o avô quanto a avó tiveram tumores. A tia, irmã de seu pai, também enfrentou a doença. Por tais antecedentes, ela sempre se inquietou com a possibilidade desenvolver o mal. Somado a isso, Ana é mãe adotiva de uma criança e, por não saber quem são os pais biológicos, também sente aflição em relação à filha.
Tanta incerteza ganhou esperança após conversa com uma colega de trabalho. A amiga relatou ter conseguido o contato de Thiago César Moreira, um farmacêutico que afirma morar nos Estados Unidos com bolsa de estudos na Johns Hopkins University School of Medicine, uma das universidades de medicina mais conceituadas do mundo. O motivo do custeio dos estudos de Thiago seria um estudo revelador em que é possível descobrir se alguém terá ou não câncer no futuro.
Interessada, Ana permitiu que o telefone dela fosse passado ao farmacêutico, que entrou em contato no começo de agosto. “Ele me mandou uma mensagem se apresentando. Disse que tinha acabado de abrir mais 50 vagas para o trabalho dele e que poderia me incluir no grupo”, relata.
Após a breve apresentação, os dois conversaram por telefone. “Ele disse que faz pós-doutorado em Baltimore (EUA) e que graças a patrocínios e bolsa, todo o teste de probabilidade de câncer é realizado de graça. O único custo seria uma taxa que a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] cobra de 252 dólares por cada amostra. Seria um valor relacionado a envio de material genético para o exterior”, explica.
O material genético pedido por Thiago é um fio de cabelo com raiz. O envio, no entanto, não deve ser feito diretamente a Baltimore, mas para Cuiabá (MT), o que chamou a atenção de Ana. “A justificativa dele é que um tal de Amilton seria a pessoa treinada por ele aqui no Brasil para que a extração de cromossomos do cabelo aconteça e ele receba tudo já separado”. Além do cabelo, cópias de algum documento com foto deveriam ser enviadas.
Ana chegou a disponibilizar a documentação de toda a família a Thiago e combinou o valor a ser pago. Um detalhe, no entanto, fez com que ela começasse a desconfiar do farmacêutico. “Meu filho começou a ler a tese de doutorado do cara e viu alguns erros de inglês. Achei isso muito estranho”, conta.
Ao perceber que a cliente dava sinais de que desistiria do teste, Thiago disse que não seria mais possível voltar atrás, pois ele próprio já havia realizado o pagamento à Anvisa, enviando até um comprovante. Mesmo assim, Ana não continuou com o teste.
Outra mulher que se interessou em saber se terá câncer no futuro foi Maria*. Indicada por Ana, ela entrou em contato e ouviu a mesma história de Thiago. “Ele diz que chegou a pedir ajuda do governo, mas o custo chegava a R$ 9 milhões, por isso, que não quiseram pagar”, lembra.
Desconfiada da veracidade da história, ela se mostrou relutante a enviar qualquer tipo de informação ao farmacêutico, que enviou vários documentos a Maria para tentar comprovar que ele, de fato, seria capaz de realizar a descoberta de um possível câncer. Resultados de teste anteriores, documentos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) autorizando o envio das amostras de cabelo e até número de registro na Sociedade Brasileira de Patologia Clínica (SBPC/ML) estão nos arquivos disponibilizados por Thiago.
Conversa com a reportagem
Sem saber que estava falando com o Metrópoles, Thiago detalhou à reportagem como funciona o suposto teste realizado por ele nos Estados Unidos. “A gente rastreia e mensura a possibilidade de atividade cancerígena no organismo. O teste é feito a partir de um fio de cabelo com a raiz ou 1 ml de sangue total. Esse exame rastreia 350 tipos de oncogenes diferentes e identifica 80% das principais atividades oncológicas do corpo”, afirma.
Com a mesma história contada a Ana e Maria, ele diz que teve o projeto de teste em larga escala negado no Brasil por causa do alto custo. “Um exame desse em condições normais custa 18 mil doláres. Eu precisava fazer isso em 500 pacientes: são 9 milhões de dólares. Não pagaram”, diz.
Segundo Thiago, ele conseguiu, além da bolsa na Johns Hopkins, um patrocínio de grande empresa e trouxe os testes para o Brasil, mesmo com vários problemas. “Primeiro embate que tive foi com a Anvisa. Começou a me questionar o envio de amostra biológica para fora do país. Tanto que o tratamento, hoje, é todo gratuito. A única despesa que o paciente tem é a taxa da Anvisa: 252 dólares”.
Perguntado sobre a necessidade de enviar o fio de cabelo primeiro ao Mato Grosso, ele procurar se explicar. “O que precisa ser feita com as amostras? Precisa ser feita a extração cromossômica dessas amostras, depois é dado um banho de criogenia, de nitrogênio e já envia pra mim essa amostra com o cromossomo isolado”, diz.
Mentira descoberta
O Metrópoles procurou as instituições no Brasil e nos Estados Unidos citadas por Thiago e todas confirmaram que a história é uma farsa. A Johns Hopkins University School of Medicine, por meio de sua assessoria de imprensa, informou “não ter nenhum registro de Thiago César Moreira” na universidade.
A Mayo Clinic Laboratories, que aparece como fornecedora dos resultados do teste de futuro câncer, afirmou ter analisado os três resultados de análise capilar que o Metrópoles teve acesso e confirmou “que os arquivos não são originados” no laboratório.
Com relação aos pagamentos, a Anvisa analisou os recibos obtidos pela reportagem e disse “os documentos apresentados não correspondem a nenhum recolhimento realizado em favor desta Agência”.
Foi ressaltado ainda que eventuais valores cobrados sempre são gerados em moeda nacional, nos termos do artigo 98, da Lei nº 10.707/2003, que dispõe que “a arrecadação de todas as receitas realizadas pelos órgãos, fundos, autarquias, fundações e demais entidades integrantes dos orçamentos fiscal e da seguridade social, far-se-á por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional”.
Também acionada, a Capes informou que os documentos de envio de material genético são falsos e que fará apuração para identificar o autor do material inverídico. “Eventuais medidas administrativas cabíveis, se houver, serão tomadas após a conclusão da referida investigação”, completou.
Procurado, o Conselho Regional de Farmácia do Mato Grosso, onde ele se formou, disse que Thiago é bacharel em farmácia, mas não pode atuar como farmacêutico por não ter o registro da categoria.
A SBPC/ML informou que “não há registro de nenhum associado nem de profissional com título de especialista (TEPAC) da SBPC/ML” com o nome de Thiago Moreira.
Investigação policial
Um boletim de ocorrência chegou a ser registrado no Distrito Federal por uma das vítimas e a investigação foi encaminhada para a Polícia Civil do Mato Grosso, onde o suposto ajudante mora. A PCMT não respondeu ao e-mail enviado.
Procurado pela reportagem durante três dias, Thiago se recusou a comentar as acusações e disse apenas que o trabalho de pesquisa dele “encerrou-se nesses seis meses”. Ele ainda afirmou que não é autor de nenhuma fraude.
*O nome verdadeiro das pessoas foi ocultado, pois elas enviaram documentos com nome completo e endereço ao suposto golpista.