Brasília: a capital que, há 63 anos, afastou um quilombo para existir
Entre o mito de Dom Bosco e o sonho de JK, havia um quilombo. Nos últimos 63 anos, comunidade perdeu cerca de 10 vezes o território
atualizado
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Antes de sediar os prédios políticos mais importantes do Brasil, a Esplanada dos Ministérios era um campo aberto de Cerrado, em que descendentes de pessoas escravizadas levavam bois para passear. O território que hoje é o Distrito Federal foi parte de uma comunidade quilombola, que resistiu ao ciclo do ouro, mas não à expansão imobiliária no Planalto Central. Com a chegada de maquinários para erguer a nova capital, aos poucos o Quilombo Mesquita foi perdendo terreno e se afastando do polígono que constitui a área do DF.
Os quilombolas ajudaram a construir Brasília. Ergueram o Catetinho – primeira residência oficial na capital – feito para que Juscelino Kubitschek acompanhasse as obras de perto. Foram também eles que inicialmente alimentaram os candangos. “Diariamente, hortaliças, verduras, leite, carnes, frutas e doces produzidos no quilombo seguiam em carros de boi lotados, direto para os canteiros de obra”. A informação é da série documental Quilombolas de Mesquita, os brasileiros que iniciaram a construção da capital do Brasil, feita pela ONG Transforme, em parceria com o Ministério do Turismo.
Assista o documentário:
Entre o mito de Dom Bosco e o sonho de JK, havia um quilombo. Comunidade que a cada aniversário de Brasília tem se limitado à periferia do Distrito Federal. Nos últimos 63 anos, Mesquita perdeu cerca de 10 vezes o território. Ainda hoje, os descendentes dos primeiros brasileiros a erguer Brasília lutam para manter as terras e resistir à construção de condomínios de luxo a apenas 64 quilômetros da Rodoviária do Plano Piloto.
Afastamento
As terras do quilombo Mesquita se tornaram alvo de cobiça para especuladores imobiliários e fazendeiros, desde a construção de Brasília iniciada em 1956, conforme indicava o relatório feito pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O documento pode ser acessado na íntegra neste link.
“Profundamente ligados à terra que herdaram, a comunidade viu grande parte de seu território ser invadida por pessoas estranhas”, destacou o documento. O estudo ressaltou que os operários vindo de diferentes partes do país residiam em alojamentos instalados às margem da nova cidade, “fazendo vizinhança com Mesquita e participando de seus festejos”.
Segundo o documento, a vida da comunidade adquiriu outro aspecto porque seu território foi ocupado por pessoas que não pertencem ao grupo e, portanto, não conhecem os seus saberes, valores, usos e costumes. Ainda hoje, “o antigo cemitério e as terras mais apropriadas para o plantio da cana de açúcar e do marmelo tornaram-se sede de condomínios residenciais que não possuem sequer saneamento básico”, informava o relatório do Incra.
Na mesma linha, o estudo Lugares de Memória do Quilombo Mesquita, da pesquisadora Cyntia Temoteo da Costa Silva, feito na Universidade Federal da Bahia, destacou o impacto do surgimento de uma nova capital para os descendentes de escravizados que ali habitavam.
“A construção da capital foi, aos poucos, expulsando as famílias que ali moravam, mais próximas de onde foi construído o Catetinho, primeira residência oficial de Brasília. O território do Mesquita, que antes se expandia além das áreas originais da fazenda, foi se centralizando nas áreas a eles concedidas”, cita a pesquisa de Temoteo.
O estudo ainda apresentou dificuldade com registros e documentos naquelas localidades. “A demarcação de terra do Distrito Federal, onde parte do território quilombola se encontra, não levou em conta o mesmo. Sem conseguir provar a titularidade da terra, parte de seus territórios foram desapropriados e ocupados pelo Estado”, consta. O trabalho com as informações pode ser acessado neste link.
História
“A vida da comunidade adquiriu outro aspecto porque seu território foi ocupado por pessoas que não pertencem ao grupo e, portanto, não conhecem os seus saberes, valores, usos e costumes”, informou o historiador Manoel Neres, da Universidade de Brasília. O professor escreveu o livro Quilombo Mesquita: história, cultura e resistência.
“Resumiram a comunidade apenas a um quadrilátero”, explicou o professor. Neres destacou que a história daquele quilombo foi formada com quatro famílias e por quase de 300 anos. “Uma sociedade que se manteve, que tem um núcleo e uma história familiar identificada, que valoriza os esforços dos ancestrais”. No livro, o professor organizou a árvore genealógica da comunidade.
Quilombola e líder da comunidade Mesquita, Sandra Braga contou com orgulho os nomes dos familiares até a quinta geração. “Lembramos sempre porque não podemos inviabilizar, não podemos esquecer o que essas pessoas, esses descendentes de escravizados passaram e o que fizeram pelo país”.
Quando tinha 31 anos, Sinfrônio Lisboa da Costa pregou as tábuas que formam as paredes do Catetinho. O quilombola foi um dos primeiros construtores de Brasília. Essa passagem da história de vida dele está registrada na Fundação Palmares e pode ser vista neste link.
Em 1975, Sinfrônio participou de um documentário do cineasta Vladimir Carvalho. O material de vídeo foi cedido pelo Quilombo Mesquita, e destacava o medo do quilombola com a chegada “do progresso”.
“A gente criava gado aqui na região, solto. Hoje lidamos com malandro, passou a ser perigoso”.
Assista ao material:
A quilombola Onélia Pereira Braga foi uma das responsáveis pelo preparo diário do alimento para os trabalhadores da grande obra. Já Enedina foi uma das primeiras cozinheiras de JK. Os irmãos Beijamim e Belmiro Teixeira eram irmãos e levavam as frutas para vender na construção.
No quilombo, as memórias são mantidas junto aos nomes. O produtor rural Benedito Antônio teria fornecido marmelada para o presidente Juscelino. Na foto, ele segura o documento de certificação.
O quilombo também foi refúgio para outros habitantes da região quando Brasília começou a ser construída. “Os familiares mais antigos nos contaram que houve um grupo que se escondeu em Mesquita na época da construção, porque eles tinham medo dos aviões, pensavam em guerra”, contou o quilombola Walisson Braga.
Ele é chefe de divisão de Gabinete da secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos do Ministério de Igualdade Racial.
Walisson destacou a parceria que a comunidade em Mesquita tinha com as populações indígenas que viviam próximo ao local. “Os antigos que trabalharam na construção contavam que as matas eram bem fechadas, e toda vez que eles iam para Brasília, os indígenas deixavam algum produto deles na beira da estrada, os quilombolas de Mesquita faziam o mesmo em forma de agradecimento”.
Apagamentos
“Não há uma placa que identifique o quilombo”, lamentou a liderança mesquita Sandra Braga. Ela destaca que o quilombo existe há 276 anos, mas que nas últimas seis décadas tem ocupado um território 10 vezes menor. “É uma violência. É violência cultural, ancestral, histórica. É uma violência te tirar desse espaço, dessa produtividade, da sua continuação familiar. É renegar uma história. É renegar um povo”.
Sandra também criticou que a comunidade passa a viver em um limbo entre Goiás e Distrito Federal. “Estamos mais perto do DF, mas às vezes precisamos de apoio de governo e temos de ir para Goiânia. A gente perdeu terra e comunidade para Brasília nascer e hoje nem aqui somos reconhecidos. As pessoas tentam apagar sempre a nossa história”.
Conflito de terras
A área definida para o quilombo Mesquita é de 4.292,82 hectares, conforme delimitou o Incra em 2011. Porém, a pesquisa de mestrado da arquiteta urbanista Mariane Paulino, da Universidade de Brasília (UnB), apontou que mais de 80% desse território se encontra ocupado por não-quilombolas.
Essas terras foram negociadas ao longo do tempo, invadidas, etc. “As pessoas não sabiam nem o valor da terra. Uma pessoa chegou a vender 20 alqueires por um terno. A nossa valia um terno, foi usada a boa-fé”, alegou Sandra Braga.
A pesquisa de Mariane identificou que no local há 124 empreendimentos agroindustriais. Há inclusive plantação de soja no local onde pessoas ocupam a área. A situação passa a ser um problema para a comunidade, que tem a água contaminada com agrotóxico e o empobrecimento do solo.
A mestre em Projeto e Planejamento Mariane Paulino destacou a pressão imobiliária desse território quilombola para o desenvolvimento de condomínios de luxo passando local. “Organizei mapas mostrando o plano diretor da Cidade Ocidental que permite a construção desses condomínios urbanísticos dentro do território”.
Veja os mapas:
Origem
A história do Quilombo Mesquita tem sua origem estimada em 1746, na região onde atualmente se localiza o município Cidade Ocidental, no Entorno do DF. A comunidade foi fundada a partir da extração do ouro, quando três mulheres escravizadas pela família Mesquita foram libertas.
A partir do declínio do ouro em Goiás, os donos das terras abandonaram os territórios. A fazenda Mesquita ficou então “de herança” para as recém-alforriadas. Atualmente, cerca de 785 núcleos familiares moram no local, totalizando 1299 quilombolas.
Essa sociedade se baseia na utilização e gestão coletiva da terra por meio da produção agrícola familiar, divisão deste cultivo e produção de forma coletiva.