Arquivos sobre mortes de Ana Lídia e Honestino Guimarães desapareceram
Documentação da ditadura tornada pública não detalha os casos emblemáticos no DF. Órgão admite que militares podem ter omitido dados
atualizado
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Os documentos secretos liberados pelo Arquivo Público do DF (ArPDF) jogaram luzes sobre a atuação dos militares em Brasília no período da ditadura. No entanto, muitas histórias continuarão nas sombras. É o caso de episódios emblemáticos ocorridos na capital, como o desaparecimento do líder estudantil Honestino Guimarães, quando tinha 26 anos, e o brutal assassinato de Ana Lídia Braga, 7. As duas vidas foram interrompidas em 1973, e a falta de informações no acervo dos órgãos oficiais despertou a atenção até mesmo de servidores do Arquivo Público local.
O superintendente do ArPDF, Nickerson de Almeida, confirmou à reportagem que existe a possibilidade de parte do material ter sido destruída. “A entrega dos documentos é de responsabilidade do órgão que os produziu. No caso, a Secretaria de Segurança. Não temos como confirmar ou garantir que parte do acervo tenha sido extraviada. Mas o fato de as investigações terem seus registros pela metade suscita a suspeita de que nem todos os arquivos tenham sido entregues”, afirma.Um dos historiadores que trabalharam na digitalização das mais de 50 mil páginas liberadas pelos militares contou ao Metrópoles uma história ouvida nos corredores do ArPDF. Segundo Marcelo José Domingos, quando os documentos foram entregues ao órgão, em 1986, um dos responsáveis pela liberação na época insinuou que houve uma triagem anterior para que alguns dados fossem retirados. “Assim, infelizmente, alguns dos mistérios da ditadura seguem sem esclarecimento.”
É exatamente o caso das informações sobre Honestino Guimarães e Ana Lídia. Em 1973, o líder estudantil acabou preso pela quarta e última vez, acusado de participar de revoltas armadas no Pará. Foi, então, levado para um presídio em Brasília. Mas, durante uma visita no Natal daquele ano, a mãe, Maria Rosa, não o encontrou no local. Até hoje, mesmo com os documentos divulgados, as circunstâncias da morte de Honestino Guimarães são desconhecidas.
Tortura e estupro
Em 11 de setembro daquele mesmo ano, Ana Lídia foi deixada pelos pais no Colégio Madre Carmen Salles, na 604 Norte. A família morava na 406 Norte. Mas a menina desapareceu após supostamente ter sido sequestrada. O corpo dela foi encontrado no dia seguinte, em um terreno da Universidade de Brasília (UnB). A criança havia sido torturada e violentada.
Próximo ao local do crime, foram encontradas duas camisinhas e marcas de pneus de moto. Apesar das evidências que poderiam levar aos culpados, o caso foi abafado. Os suspeitos eram o próprio irmão de Ana Lídia e filhos de políticos que teriam envolvimento com o tráfico de entorpecentes. O motivo da morte seria em decorrência de uma dívida de drogas.
Documentos que poderiam ajudar a explicar as duas tragédias simplesmente não existem. “Buscamos informações na documentação, mas não há dados relevantes ou novos”, contou Marcelo José Domingos.
Doutorado nos Estados Unidos
Em 2014, Domingos, na época servidor da Secretaria de Educação, foi transferido de forma temporária para o Arquivo Público do Distrito Federal. Historiador de formação, ele seria um dos responsáveis por avaliar o acervo produzido pela Secretaria de Segurança na época do regime militar.
O pesquisador passou oito meses analisando os dados e foi um dos envolvidos no processo de digitalização dos documentos. Desde então, conseguiu ler cerca de 10% do material, o que já rendeu boas ideias de pesquisa. Mas foi na semana passada, com a disponibilidade do arquivo para o público, que Domingos conseguiu impulsionar o projeto final do doutorado, cursado atualmente na Universidade do Texas, em Austin.
Os professores norte-americanos ficaram entusiasmados com a ideia de se aprofundar no estudo da ditadura brasileira com documentos inéditos. “Os acadêmicos americanos têm muito interesse em pesquisas sobre o Brasil. Para ter ideia, encaminhei esse projeto a quatro universidades dos Estados Unidos. Três delas responderam o e-mail no dia seguinte, demostrando interesse em bancar a pesquisa. Acabei escolhendo a do Texas pela linha de pesquisa”, conta Domingos.
Segundo o acadêmico, o debate sobre a ditadura tem temas extremamente atuais. “É escandaloso como, mesmo sem internet nem nada semelhante, o Estado tinha total capacidade de investigar a vida dos cidadãos em seus aspectos mais privados. Imagina hoje em dia com o cruzamento de dados por meios digitais? Isso é assustador.”
Na visão do pesquisador, “quando uma pessoa pede a volta da ditadura, se esquece que todos, sem exceção, tornam-se inimigos do Estado. Os militares não analisavam a vida pregressa apenas das pessoas consideradas de esquerda. Todos eram passíveis de acusação. E isso fica muito claro nos documentos recém-divulgados”, finaliza.