Água Quente: futura cidade do DF é cercada por problemas e esperança
Desconhecida de boa parte da população do DF, futura região administrativa tem 30 mil moradores que carecem de serviços básicos
atualizado
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Um dos primeiros moradores de Água Quente simboliza bem a cidade. Raimundo Nonato Ferreira, 56 anos, se considera uma pessoa simples, que se reúne com amigos na feira quando quer ter algum tipo de lazer. Vislumbrando um futuro melhor para a localidade, diz sonhar com “aquilo que o povo das outras cidades tem”. Isso porque Água Quente ainda não é oficialmente uma das regiões administrativas do Distrito Federal. Sem o status de cidade, os 30 mil habitantes não têm acesso a asfalto, hospitais, saneamento e qualidade de vida igual a outros moradores da capital.
A notícia boa é que a oficialização de Água Quente como a nova RA do DF pode acontecer já neste ano, ainda em meio a um desconhecimento de grande parte da população sobre a região.
O governador Ibaneis Rocha (MDB) adiantou que vai enviar à Câmara Legislativa, até dezembro, as propostas para criação de duas regiões administrativas. Uma delas é Arapoanga, que faz parte de Planaltina, tem aproximadamente 50 mil pessoas e já é um nome mais comum ao brasiliense. A outra é Água Quente. “O pessoal acha que fica em Goiás, ou perto de Caldas Novas quando falamos o nome”, brinca Marcos Constantino, morador e gerente da regional do setor habitacional.
Água Quente é uma região que começou a ser formada na década de 1990, dentro do Recanto das Emas, fazendo divisa com Samambaia e Santo Antônio do Descoberto (GO), sendo predominantemente rural. Alguns pontos mais afastados chegam a ser mais próximos de Ceilândia. Os moradores foram conquistando direitos como água tratada e energia elétrica, que hoje alcançam quase toda a população, mas ainda enfrentam problemas de infraestrutura. O asfalto, por exemplo, não existe em dois terços do território.
Origem
A história do nome é contada de forma diferente por diversos moradores, mas uma das versões mais ouvidas diz que ela foi nomeada por Joaquim Roriz, por conta da temperatura de uma água que ele bebeu no local, certa vez. Uma escola da região, inclusive, se chama Myriam Ervilha, em homenagem à cunhada do ex-governador. Ela foi secretária de Assistência Social no município goiano próximo dali.
Natural do Piauí, Raimundo Nonato e a esposa, Maria dos Remédios, 64, são pioneiros na região. Eles se mudaram de Samambaia para Água Quente em 1996, quando conseguiram ajuda para comprar o lote de um grileiro e construíram a casa própria. “Aqui era só buraco e umas três casas, contando com a nossa”, diz ela. Os vizinhos foram chegando aos poucos, até que a então comunidade rural passasse a ter características mais urbanas.
Um condomínio cresceu e se desenvolveu, a energia elétrica foi ampliada e surgiu a Feira Permanente, fruto dos esforços de Raimundo. Em uma área alugada do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), a feira teve início em 2010, como um dos poucos pontos de lazer da comunidade. Dona Maria, que recebia apenas benefícios sociais do governo e o salário de doméstica, juntou as próprias roupas dela e do marido e começou a vender as peças em uma das bancas para começar o negócio. “Coloquei na banquinha de lona. Passava o dia todo vendendo”, lembra ela.
Hoje, o local é um dos maiores orgulhos do casal, que tem duas filhas, nove netos e dois bisnetos. “É muito bom quando vejo os familiares trabalhando, ganhando seu dinheirinho. A gente montou a feira para isso, para dar sustento aos menos favorecidos. É a oportunidade de crescer”, reflete Raimundo.
Mas, para ele, ainda falta muito para que Água Quente seja uma cidade como qualquer outra. “Hospital, quando precisamos, é o de Taguatinga, o de Samambaia ou de Santo Antônio. Não temos banco, casa lotérica, Unidade de Pronto Atendimento (UPA), conveniência, delegacia. Falta tudo, na verdade. Tudo depende do Recanto ou de Samambaia. Mas quando criar a RA, o negócio vai deslanchar”, comenta, esperançoso. A esposa, que é atendida pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras), também pede uma unidade do órgão na cidade.
Outro morador antigo da região é João Campelo, de 66 anos. Assim como Raimundo e Maria, ele veio para Brasília buscando uma melhora de vida e foi se afastando do centro do Poder da capital. “Éramos 17 irmãos no Ceará, fretamos um ônibus e viemos, em 1979. Meu pai conseguiu comprar uma casa em Ceilândia e eu sempre vinha pescar em Água Quente. Me mudei para cá em 1996, quando abri um negócio aqui”, relata.
João é dono de um restaurante na futura região administrativa do DF. “Ele é tudo para mim. Principalmente na minha idade, porque não consigo ‘fichar’ [carteira de trabalho] em lugar nenhum. Quando chega a eleição, as autoridades todas vêm aqui comer a carne de sol. Eu deixo uma mesa do lado de fora e peço para eles colocarem o santinho lá. Depois, não aparecem.
Saúde e segurança
Enquanto a reportagem visitava Água Quente, Terezinha Maria da Silva, 60 anos, acabou pisando em um prego próximo à parada de ônibus e ficou na porta de um dos dois postos de saúde da região esperando o local abrir. Era horário de almoço, não há atendimento de urgência no local. “Moro aqui há 14 anos. Foi onde tive condição de comprar minha casa. Mas no posto de saúde tem coisa que acho descontrolado. Se preciso tomar uma vacina e vou de manhã, falam que só tem de tarde, por exemplo. Quem trabalha ‘lá’ em Brasília perde o dia”, reclama.
Maria Vitória de Sousa, 46, mora e tem um comércio na região, mas afirma que tem de sair de lá para várias demandas básicas, principalmente de saúde. “Só têm dois postos e são poucos médicos, então, só começam a atender depois de 9h. Quem adoecer de manhã cedo vai fazer o quê? Tem que ir para outra cidade. E até chegar em um hospital leva uma hora. Quando chega lá, são mais três horas para ser atendido.”
Em um dos postos, a Unidade Básica de Saúde São Francisco II, Graça Queiroz, 44, critica: “Aqui, todo mundo paga IPTU, mas não vemos nada vindo para cá, é tudo para o Recanto”. Ela procurava atendimento por conta de uma suspeita de bronquite. Apesar dos problemas estruturais, ela elogia a atenção dada pelos profissionais. “Se esforçam e fazem o que podem”.
Já na área da segurança pública, Graça não pode contar com uma delegacia, por exemplo. A área é atendida pela 27ª Delegacia de Polícia (Recanto das Emas), que fica a quase 30 minutos de distância, de carro, das avenidas centrais de Água Quente. “Minha casa foi furtada há 15 dias. Quando cheguei, os bandidos ainda estavam lá. Tive de ir ao Recanto das Emas para fazer uma ocorrência”, lamenta.
Nas paredes de comércios e casas por Água Quente, os moradores encontram pichações com avisos como: “Não roube na quebrada, porque você pode morrer se roubar a mãe de bandido”, além de menções a organizações criminosas. A reportagem questionou a Divisão de Comunicação da Polícia Civil (Divicom) quantos crimes ocorreram no ano em Água Quente, mas não obteve respostas até a última atualização desta matéria.
Educação
Além de mais postos de saúde e uma delegacia, a população pede mais escolas. Atualmente, três instituições públicas atendem a comunidade. O Centro Educacional Myriam Ervilha é uma das que simbolizam a cidade, mesmo sendo mais antiga do que as primeiras ruas da região. O terreno de 12.500 m² onde atualmente estudam 1.800 alunos foi uma doação feita pela família de um morador, hoje servidor da cozinha.
A coordenação da escola ficou por anos sendo feita pela Regional de Ensino de Samambaia, mas passou a ser atribuição da Regional do Recanto das Emas em 2013. Atualmente, ela atende estudantes do 6º ano ao Ensino de Jovens e Adultos (EJA), sendo, nas palavras do diretor, “uma agente social”. “Tenho alunos que fazem refeições na escola três vezes, com alimento com carne ou galinhada”, comemora José Aldias Serra.
“Essa região é cortada pela DF-280, então, nas duas margens têm habitações. Recebemos principalmente estudantes de Água Quente, mas também temos cerca de 10% que são de Santo Antônio do Descoberto. A maioria das famílias carece de assistência e é vulnerável”, explica o diretor.
O CED Myriam Ervilha é a maior estrutura pública de Água Quente, então, acaba tendo papel fundamental para o desenvolvimento da cidade. “A escola abre para atendimento à comunidade. Temos aula de empreendedorismo, tivemos atendimento do CRAS”, cita. Em maio deste ano, o colégio recebeu uma audiência pública com moradores e autoridades para discutir a transformação em região administrativa. Todos os mais de 400 participantes foram favoráveis.
“Esse pedido para transformar em RA não é vaidade, é um apelo de busca por melhorias. Tem uma área que precisa ser regularizada, porque às vezes o único bem da pessoa é o lote, a casa. Precisa de um transporte que atenda especificamente essa comunidade. Necessidade de postos de saúde, delegacia, hospital, mais vagas em creches, escolas primárias e ensino médio. É uma necessidade latente. E há um potencial enorme aqui”, sintetiza Aldias.
Estudos de área e próximos passos
A área exata de Água Quente ainda é desconhecida, mas está sendo definida, com um estudo da poligonal topográfica, como explicou o secretário-executivo das Cidades, Valmir Lemos. “Hoje, estamos concluindo o projeto de poligonal e fazendo a proposta de estruturação administrativa da região. Precisamos direcionar os cargos dos servidores que vão atuar lá, calcular o investimento. A partir daí, vamos enviar os estudos ao governador para encaminhar à Câmara Legislativa”, disse.
Valmir avalia que a região precisa de pavimentação, ampliação de escolas, de postos de saúde e outras ações de infraestrutura básica. “Isso envolve não só projetos, mas licitações que precisam ser realizadas, por exemplo. Para isso, a criação da região administrativa, com uma administração mais próximo da realidade, é fundamental.”
O gerente da Regional do Setor Habitacional Água Quente, Marcos Constantino, também detalha que essa concretização como RA é essencial para investimentos na localidade. “Com a criação, os deputados vão poder mandar emendas parlamentares, por exemplo. Hoje, o governo não pode colocar um tratamento de esgoto, asfalto, sem essa legalidade”, conta.
Luciano de Sousa, assessor técnico da gerência regional, também opina que não há muitos investimentos em áreas que não são 100% seguras. “As necessidades só podem ser sanadas pela criação da RA. Isso é fundamental. Tem que vir tudo para cá, mas o essencial é a região administrativa.”