Afrouxo nas normas de construção do Setor Gráfico privilegia empresários e afronta ordem urbanística
Especialistas alertam que as mudanças na área tombada provocarão transtornos no trânsito. Projeto de lei autoriza pelo menos 160 novas atividades na região
atualizado
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A pressa do Governo do Distrito Federal (GDF) para alterar usos e normas de ocupação do Setor de Indústrias Gráficas (SIG) contraria especialistas e entidades de arquitetura e urbanismo, colocando em evidência a sobreposição de prioridades da população em função de interesses de um seleto grupo. De 68 lotes consultados pelo Metrópoles em escrituras no Cartório do 1º Ofício do Registro de Imóveis, 44 pertencem a seis grupos empresariais ou instituições privadas, segundo dados da Receita Federal do Brasil.
Os terrenos fazem parte, de acordo com o Fisco, do patrimônio da família de Pedro Camilo Valadares Gontijo, da Vagon Engenharia Civil; de Fernando Costa Gontijo, da Imperial Gold Participações Imobiliárias; de seis integrantes da família Skaf, proprietária da Soheste Empreendimentos Imobiliários; do empresário Paulo Octávio; do Correio Braziliense; e de Edson Elias Alves da Silva, proprietário da EEE Empreendimentos. Soma-se a esse núcleo de poderosos um pool de advogados que mantêm escritórios em prédios no SIG, como o Edifício Barão de Mauá, na Quadra 4. As mudanças dão a eles o direito de ampliar suas atividades e adicionar mais andares nos prédios já existentes.
A partir das regras propostas pelo GDF, o limite de altura para construções nos lotes poderá passar dos atuais 12 metros para até 15 metros. Na prática, isso significa que edifícios que hoje têm até quatro andares poderão chegar a cinco. Assim, um empreendimento que abriga, por exemplo, 200 funcionários por pavimento e tem hoje quatro níveis, poderia, com as novas regras, ampliar seu corpo de pessoal em 25%. Um excelente negócio do ponto de vista empresarial, mas cujo impacto será sentido socialmente, especialmente por motoristas e usuários de transporte público que circulam pela região – hoje, já no limite do congestionamento.
A minuta de projeto de lei complementar (PLC) elaborada pelo Executivo também amplia as possibilidades de atuação no setor. Atualmente, são permitidas apenas atividades bancárias, de radiodifusão e impressão de jornais e revistas. A flexibilização aumenta essas modalidades de negócio em, pelo menos, 160 atividades, divididas entre industrial, comercial, institucional e de prestação de serviços.
Entre os novos usos previstos na minuta do PLC estão autorizados: escritórios de advocacia, de contabilidade e auditoria; supermercados; hortifruti; atividades esportivas e de lazer; agências de viagem; escolas; padarias; empresas de seguro, entre outras.
A iniciativa abre um precedente para que todos os prédios residenciais e comerciais do Plano Piloto, inclusive as superquadras, tenham suas alturas aumentadas.
O assunto vai ser tema de audiência pública nesta segunda-feira (03/06/2019). A discussão pública é uma das etapas exigidas pelo Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal (Conplan) antes que o tema vá à Câmara Legislativa.
Críticas
O apressar do passo na aprovação das mudanças é reprovado pelo grupo Urbanistas de Brasília. Para a arquiteta e integrante da entidade Romina Capparelli, as alterações não poderiam ser apartadas dos estudos do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub), especialmente porque a região faz parte da área tombada de Brasília.
Isso está no bojo do PPCub. Por que priorizar as mudanças em uma só região? Estão dando a entender que o PPCub e a área tombada de Brasília podem ficar para depois. O que está claro nesse assoberbamento é que o GDF cede à pressão de empresários que visam ao lucro e a escritórios de advocacia que querem se instalar na região
Romina Capparelli, arquiteta
Para ela, as consequências da pressa são incalculáveis. “Quando você aumenta um pouquinho aqui, um pouquinho ali, abre um escritório, outro, o impacto no trânsito não é visto de imediato, ele vai aparecendo ao longo dos anos. Sem um planejamento, sem um estudo único que faça essas previsões e dê soluções, a região pode ficar insustentável”, alerta.
O genro de Oscar Niemeyer e arquiteto Carlos Magalhães também reprova a análise do SIG em separado e em regime de urgência. Para ele, as mudanças na região central de Brasília precisam ser estudadas em conjunto, pois os efeitos ocorrem em cascata.
Para Magalhães, o projeto de lei do SIG é uma “barbaridade”. “Eu lutei muito pela preservação de Brasília. Hoje, fico olhando de longe porque não quero chegar perto dessa gente que só pensa no lucro imediato. Eu, que sou velho, não deveria pensar no futuro, mas penso. Esse governo, não.” Para Magalhães, mudanças no SIG não podem estar desconectadas da análise do PPCub.
Infraestrutura
As consequências de um acréscimo vigoroso de atividades e população em uma área tombada de Brasília vão gerar sobrecargas na infraestrutura da região, como na captação de água e tratamento de esgoto, conforme alerta o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), Daniel Mangabeira. “Há necessidade de repensar aquela área. Tudo mudou desde quando o SIG começou a existir. Porém, as consequências da modificação precisam caminhar em conjunto com a avaliação da proposta”, disse Mangabeira.
A opinião do presidente do CAU é endossada por outros especialistas, como Frederico Flósculo, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) e militante do grupo Urbanistas por Brasília. “O governo precisa demonstrar que a mudança de uso é sustentável, em termos de energia, de impacto no trânsito, na Defesa Civil, no saneamento”, ressaltou.
Ele defende que, no processo de revisão do SIG, haja respeito ao plano urbanístico e aos trâmites legais. “Além das etapas legislativas, como a passagem pela Comissão de Constituição e Justiça, é necessário ter o crivo de outras tramitações, como no Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] e na própria Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura]. Esses dois órgãos têm de ser chamados sempre que o governo faz uma mudança assim.”
Além do olhar atento dos especialistas e integrantes do Conplan, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) informou ao Metrópoles que, por meio da Promotoria de Defesa da Ordem Urbanística (Prourb), vai acompanhar de perto todo o processo.
Quem são os donos do SIG
No começo de Brasília, famílias de diversas partes do mundo chegaram à nova capital para estabelecer negócios, e muitas investiram no SIG. Desde as primeiras escrituras registradas em cartório na região, em 1977, os terrenos passaram por alterações. Alguns empresários faliram, outros adquiriram ainda mais lotes na área para atividades distintas, muitas sem previsão na Norma de Gabarito do SIG.
De acordo com as escrituras dos terrenos analisadas pelo Metrópoles, o empresário Paulo Octávio, por exemplo, é dono de 11 áreas no SIG. O nome dele aparece como comprador dos lotes 570, 580, 590, 905, 915, 925, 935, 945, 955, 965 e 975. Parte desses terrenos, Paulo Octávio adquiriu no leilão da antiga TV Manchete. Há um prédio onde ficava o curso preparatório para concursos Grancursos. A edificação foi projetada por Oscar Niemeyer. O empresário também comprou a área onde estava lotada a sede do extinto Jornal da Comunidade.
Em 2009, uma nova família passou a figurar entre os empresários do SIG: a família Skaf, dona da Soheste Participações e Empreendimentos Imobiliários. Hoje, tem quatro lotes na região, todos comprados da Politec Incorporadora em abril de 2009, segundo as escrituras registradas em cartório. Os lotes 530, 540, 550 e 560 ficam na Quadra 2 do SIG. O valor de cada um foi R$ 3 milhões. David José Skaf, Dalva Duarte Skaf, José David Skaf, Sarah Alexandra Skaf, Patrícia Skaf e Priscilla Skaf são os donos da empresa.
O dono do Triplex
No ano seguinte, em 2010, de acordo com escritura pública registrada no Cartório do 1º Ofício de Registro de Imóveis do DF, o empresário Fernando Costa Gontijo comprou os 10 lotes que pertenciam ao Jornal de Brasília. A Imperial Gold Participações Imobiliárias pagou R$ 950 mil por quatro: os de número 585, 595, 605, 615, após o terreno ter sido garantidor de diversos empréstimos junto ao Banco de Brasília (BRB).
Pelos registros, a Imperial Gold comprou ainda os lotes 625, 635 e 645 por R$ 1,9 milhão. Além de ser o dono dos terrenos legalmente, Fernando Gontijo é o empresário que comprou o triplex no litoral paulista – o imóvel é atribuído ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e associado à sua prisão após condenação na Lava Jato.
Em 15 de maio de 2018, Gontijo ofereceu o único lance, de R$ 2,2 milhões (valor mínimo), no leilão marcado pela Justiça para a venda da propriedade. O triplex foi arrematado cinco minutos antes do fim da primeira etapa do certame virtual.
Da estrutura original do SIG, com escritura datada de 1977, ainda há o Jornal Correio Braziliense, dono de nove lotes. Naquele ano, o periódico foi adquirido por José Arimathéa Gomes Cunha, o Ari Cunha, que morreu em julho de 2018. Com sucessivas negociações de dívidas com o Banco de Brasília, o jornal, hoje, amarga um dos débitos mais altos de sua história, conforme consta da escritura.
Na última negociação, em 12 de maio de 2016, o imóvel foi alienado fiduciariamente (dado como garantia) à empresa Pentágono S/A Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários, com sede no Rio de Janeiro. O agente é garantidor de debenturistas em uma dívida no valor de R$ 56 milhões, crédito emitido mediante a escritura de 56 debêntures.
A reportagem ligou para todos os empresários citados, mas não conseguiu contato ou não teve a demanda respondida até a última atualização desta matéria.
O que diz o governo
No evento em que o governador do DF, Ibaneis Rocha, anunciou a retirada do SIG da análise do PPCub, em 25 de abril deste ano, a alegação foi no sentido de alavancar a região e facilitar o desenvolvimento do Distrito Federal. Segundo ele, a proposta de flexibilização do uso dos lotes do Setor de Indústrias Gráficas garante “segurança jurídica” às empresas instaladas no local.
O secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), Matheus Oliveira, endossa a posição. “A iniciativa de fazer um projeto de lei separado do PPCub ocorre porque o governo vislumbrou primeiro a urgência do setor produtivo, do ponto de vista do desenvolvimento econômico”, disse.
De acordo com o chefe da pasta de Habitação, todos os estudos estão sendo realizados e a atualização não prevê de imediato que novos prédios sejam erguidos. “As atividades que estamos listando no PLC já são realizadas no SIG. É um projeto muito antigo, de 1960, temos que mudar. Os estudos técnicos vêm sendo realizados há cerca de 10 anos”, disse.
Para ele, a audiência pública a ser realizada nesta segunda-feira (03/06/2019) dará a oportunidade de a população, moradores, entidades e órgãos de classe apresentarem suas sugestões.
Por meio de nota, a Seduh reiterou que não há mudança de fluxo imediata em vias vitais de Brasília, como o Eixo Monumental e a Estrada Parque Taguatinga (EPTG).
“A Seduh não trabalha com a expectativa de aumento de trânsito na região, por conta da flexibilização do uso dos lotes do SIG. Em um segundo momento, se surgirem novos empreendimentos que possam causar algum tipo de impacto no trânsito, os estudos serão solicitados.”
O Metrópoles solicitou ao Departamento de Trânsito (Detran-DF), ao Departamento de Estradas de Rodagem (DER-DF) e à Secretaria de Mobilidade os dados sobre a circulação de veículos nas vias do SIG, mas os órgãos não responderam à reportagem.
Embora o governo não tenha informado os números oficiais, a situação do trânsito no local é nítida para qualquer cidadão que passa pela região. Sem vagas, centenas de carros ficam estacionados ao longo das vias que margeiam órgãos importantes – como a Câmara Legislativa, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE), o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e o Ministério Público – e por onde circula muita gente.