Acesso ao ensino superior é desafio para internos do sistema prisional
Embora existam mecanismos, falta de informação e burocracias no sistema prisional dificultam que internos consigam acesso à formação
atualizado
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Todos os anos, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) permite que milhares de estudantes realizem o sonho de entrar em faculdades e universidades pelo país. Para João Pedro*, 33 anos, a prova representa, além da formação, a oportunidade de mudança de vida fora do cárcere. Ele é um dos 136 detentos do Distrito Federal aprovados no Enem 2020 para Privados de Liberdade (Enem PPL).
No DF, dos 15.369 internos que o sistema prisional possui, mais de 7 mil não chegaram a concluir o ensino fundamental. Além disso, apenas 397 conseguiram entrar em uma faculdade. O número inclui tanto concluintes, quanto pessoas que abandonaram o curso.
João Pedro é um dos que tentam mudar essa realidade da baixa escolaridade entre a parcela da população carcerária. Preso em maio de 2019, enquadrado no crime de tráfico de drogas ao ser pego com aproximadamente 160 gramas de maconha, o jovem precisou do apoio da família para conseguir realizar o sonho de cursar direito.
O uso de entorpecentes começou anos atrás, antes de completar a maioridade. Aos 18, vítima de um assalto, João levou um tiro no peito. A mãe, Maria das Graças*, 54, conta que a situação lhe causou um grande trauma e foi quando ele passou a abusar de drogas. O vício fez com que o jovem, que sempre tirou boas notas na escola, deixasse para traz o desejo de fazer faculdade.
“Se trancou no quarto, não frequentava nenhuma reunião com amigos ou familiares. Foi um período muito difícil”, contou a mãe ao Metrópoles.
O sonho só voltou a ser uma possibilidade em 2020, quando Maria das Graças descobriu, por intermédio da advogada, que existiam formas de estudar dentro da penitenciária. Começou com cursos profissionalizantes, os quais os familiares pagam e os internos recebem uma apostila, estudam e fazem uma prova final.
Passada essa primeira etapa para João, a mãe o inscreveu no Enem PPL, e após enfrentar uma grande burocracia para enviar o material a fim de que o filho pudesse estudar, o esforço valeu a pena e ele passou na prova.
João Pedro foi aprovado no curso de direito da Faculdade Projeção. Desde setembro, a rotina se divide entre o trabalho como balconista em um comércio, o curso à distância, que acompanha da casa da mãe, e o retorno ao Centro de Progressão Penitenciária (CPP) no fim do dia. Ele está em regime semiaberto.
A grande referência de João Pedro é a própria advogada dele. Com duas filhas e livre do vício, o sonho agora é poder voltar para a penitenciária de cabeça erguida e ajudar outros internos a mudarem de vida.
“Acredito, sim, que o estudo é uma forma de mudar a vida não só dele, como de qualquer pessoa. O estudo dignifica a pessoa, dá oportunidades e segurança”, avalia a mãe.
Barreiras
A educação é um dos elementos fundamentais para a ressocialização de internos do sistema prisional. O acesso ao ensino superior, porém, ainda é uma barreira a ser superada. A trajetória de João Pedro foi possível pelo esforço de familiares, que correram atrás dos instrumentos para que ele estudasse.
O Enem PPL não só possibilita a entrada na faculdade, como também permite a remição de pena. No caso do estudante de direito, porém, a Vara de Execuções Penais não autorizou, inicialmente, que o benefício fosse concedido. A família só conseguiu a remição após recorrer na Justiça.
A mãe reclama da falta de informação do sistema sobre os programas de educação e capacitação aos quais os internos têm direito. Além disso, lamenta pelos maus-tratos físicos e psicológicos que a família e os presos são submetidos.
“Meu filho teve estrutura familiar, boa educação. Graças a Deus não saiu de lá pior que entrou, mas quantos se perdem nesse processo?”, questiona Maria das Graças. “É muito, muito triste. Choro por todas as mães que estão passando por essa situação. Mãe nenhuma cria um filho para ficar naquele lugar.”
Especialistas apontam que mesmo aqueles que conseguem passar no exame, nem sempre podem cursar. O problema é a logística dos presídios, que não permitem que o preso saia para assistir às aulas, e nem têm estrutura para criar um ambiente específico para esse fim.
A presidente da Associação Humanizando Presídios (AHUP), Mariana Rosa, defende que as falhas na educação e os problemas de criminalidade estão intimamente ligados. A falta de escolas e creches em locais mais pobres deixam crianças e adolescentes vulneráveis ao aliciamento de traficantes e outros criminosos. Com isso, esses jovens entram no mundo do crime muito cedo e, consequentemente, acabam caindo no sistema prisional.
Para Mariana, é necessário criar instrumentos afim de que o preso consiga estudar e abrir novas possibilidades de vida fora do cárcere. Porém, essa é uma realidade ainda distante. Segundo a ativista, enquanto os presídios abrigam milhares de pessoas, os blocos reservados para estudantes no sistema prisional masculino, por exemplo, comportam somente cerca de 120 internos cada.
“O próprio sistema prisional faz com que o preso se diminua, sinta que ele não tem capacidade de estudar e continue naquele mundo. Têm celas que cabem oito e tem cinquenta presos. E aí, o que eles vão estar aprendendo ali?”, analisa Mariana.
Em relação ao trabalho, defende também a necessidade de programas de qualificação profissional para os detentos. O desemprego pode contribuir para o retorno dessas pessoas à criminalidade.
Experiência familiar
Mariana viu de perto como a falta de oportunidades pode afetar a vida de internos. O irmão, Marcos Antônio Moreira entrou para o crime cedo, aos 13 anos, e durante cinco anos ficou entre idas e vindas aos centros de detenção. Aos 18 fugiu e cometeu sete assaltos que renderam a ele uma pena de 97 anos.
No decorrer dos 13 anos em que esteve preso, Marcos Antônio passou por fases de rebeldia, revolta, conformação e aceitação. Em um desses períodos, decidiu buscar uma forma de mudar de vida por meio do Enem PPL. Estudou e passou para o curso de administração, porém, por conta da logística, não conseguiu cursar.
Três anos depois, tentou de novo e realizou o sonho de passar para a faculdade de direito. Entretanto, mais uma vez, foi impedido de seguir com o curso pela falta de estrutura do presídio. Sem perspectiva, Marcos morreu durante uma das maiores fugas de presídios do DF.
“Meu irmão tinha sonhos. Se você analisar todo o processo de vida naquele submundo, ele tinha um perfil de uma pessoa muito inteligente. Eu penso que se tivesse investido nessa capacidade intelectual dele, de poder estudar e de se tornar uma pessoa instruída, tenho certeza que ele teria contribuído com a sociedade de uma forma positiva”, reflete a Mariana.
“Por mais crimes que tenham cometido, o direito ao sonhar é pra todos, né? Considerando que o estado é o tutor, ele é responsável por todos aqueles internos. Ele tem, por obrigação, de dar oportunidade para que aquele preso, de alguma forma, se reinserir na sociedade. Não foi dada essa oportunidade, não foi garantido esse direito ao meu irmão de se reinserir, de sonhar, de poder se formar”, lamenta.
Dados
O DF tem 1.469 inscritos para a edição do Enem PPL de 2021. As provas serão realizadas em 9 e 16 de janeiro de 2022. O número é o maior dos últimos dois anos, com 1.131, em 2020, e 1.247, em 2019.
A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Distrito Federal informou que, enquanto preso, o interno pode dar continuidade aos estudos no ensino superior de duas formas. A primeira pelo benefício da saída temporária, concedido pela Vara de Execuções Penais, e a segunda por meio do ensino à distância. Porém, essa modalidade ainda não foi implementada no sistema penitenciário do DF. Segunda a pasta, a implementação do EAD é uma das metas estabelecidas no Plano Distrital de Educação.
Além do Enem PPL, a secretaria afirmou que existem outras ações voltadas para a educação formal e profissionalizantes dos detentos. Entre elas, a oferta da Educação de Jovens e Adultos – EJA, a Remição pela Leitura, o Encceja PPL, o Concurso de Redação da DPU, o Pronatec PPL, entre outros. No último Encceja PPL, que permite a certificação para o ensino fundamental e médio, mais de 2 mil internos participaram.
*Nomes fictícios