A polêmica decisão que veta trabalho de 365 jardineiros em cemitérios
Medida recente proíbe jardineiros autônomos de atuarem nos seis cemitérios do DF; população, no entanto, prefere o serviço independente
atualizado
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A guerra entre os 365 jardineiros autônomos de cemitérios do Distrito Federal e a concessionária Campo da Esperança Serviços Ltda., responsável por administrar as seis unidades da capital, teve novos capítulos nos últimos meses. Esse entrave, que dura mais de duas décadas, ainda deve render muitas discussões envolvendo os profissionais, a Campo da Esperança e as famílias de pessoas enterradas na capital federal.
Isso porque, mesmo com a negativa judicial, os jardineiros seguem trabalhando normalmente pelos cemitérios, enquanto recorrem da decisão. A Campo da Esperança, por outro lado, faz duras críticas aos profissionais e os acusa de furto, retaliação, vandalismo, criação de provas falsas, entre outros crimes. No meio do fogo cruzado, parentes das pessoas enterradas ali parecem estar do lado dos autônomos.
A batalha
A Campo da Esperança Serviços cuida dos seis cemitérios do DF (Asa Sul, Brazlândia, Gama, Planaltina, Sobradinho e Taguatinga) desde 2002. Muito antes, porém, os jardineiros autônomos já cuidavam dos túmulos. De acordo com a Organização Social de Jardineiros de Cemitérios do DF (Osjacem, antiga Ajacem), os profissionais atuam no ramo desde 1985.
Funcionava assim: o cidadão que não tinha condições de visitar e cuidar do túmulo do parente falecido com frequência, ou que até mesmo quem não queira ou consiga ter esse trabalho, seja qual o motivo, buscava um jardineiro autônomo para cuidar do jazigo. O acordo era informal, direto entre familiar e profissional, moldado por eles mesmos, da forma que melhor lhes atendesse.
Como a Campo da Esperança Serviços fechou contrato com o Governo do Distrito Federal (GDF) em 2002 para cuidar dos cemitérios da capital, entendia-se que, a partir dali, a empresa seria a responsável pela manutenção dos túmulos. Iniciou-se, então, uma negociação entre a concessionária e os autônomos, para que se chegasse a um consenso. Vinte e dois anos depois, as partes não chegaram ao denominador comum.
Nos últimos 22 anos, as partes travaram embates judiciais, discussões na mídia e acusações mútuas. Mais recentemente, em julho deste ano, a 1ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) decidiu que os jardineiros da Osjacem não podem realizar serviços de jardinagem nos cemitérios.
A ação foi movida pela própria Osjacem, que alegou que funcionários da Campo da Esperança estariam ameaçando jardineiros independentes e tentando impedir que eles entrassem nos cemitérios. A Justiça considerou, contudo, que os autônomos ferem a concessão do GDF ao trabalharem na unidade sem autorização.
A Osjacem recorreu, baseando-se na Lei nº 1.349, de 27 de dezembro de 1996. O artigo 1º afirma: “Fica assegurado aos profissionais vinculados à Associação dos Jardineiros dos Cemitérios do Distrito Federal (Ajacem) e aos familiares do falecido o livre acesso aos cemitérios públicos, bem como à infraestrutura existente, com o objetivo de executarem serviços de limpeza e manutenção dos túmulos.”
O desembargador Waldir Leôncio Júnior, presidente do TJDFT, indeferiu um recurso extraordinário em 17 de outubro último. A batalha continua, promete a Osjacem.
O que pensam os parentes
O Metrópoles ouviu alguns moradores de Brasília que têm parentes sepultados nos túmulos e contratam os jardineiros autônomos para fazer a manutenção.
A empresária Adriana Silveira visitou o túmulo do pai, Rosemiro, nessa sexta-feira (8/11), no Campo da Esperança da Asa Sul. O local mostra um contraste entre o jazigo da família de Adriana e aqueles que não têm manutenção particular.
“Deveria ser tudo uniforme, mas bem cuidado. A gente já paga as taxas do cemitério e ainda tem que pagar um autônomo para ter preservada a imagem do ente querido”, lamenta a empresária.
O pai de Adriana faleceu em 2016. “Mantemos um bom tempo esse cuidado nas mãos da administração do próprio cemitério, mas não estávamos vendo resultado, mesmo pagando por isso. Então, procuramos alguém por fora para arrumar [o jazigo do pai]”, comenta.
“Eu até preferiria pagar o próprio Campo, mas de que adianta pagar e não ter o serviço?!”
O servidor público Silvio Ricardo Silveira também esteve na unidade da Asa Sul para rever os jazigos da mãe, do pai, e da tia, mortos em 1971, 2001 e 2006, respectivamente. Segundo ele, os três estão sepultados no trecho “mais esquecido” do cemitério.
“Pelo fato de aquele lado ser mais antigo, aí é que eles abandonam, mesmo. Lá, o mato te cobre”, afirma. “Os túmulos dos meus parentes estão ‘zerados’, mas somente porque eu pago pelo jardineiro”, completa.
Uma mulher de 56 anos, que pede para não ser identificada por medo de represálias, diz que a diferença é “gritante” entre os jazigos administrados pela Campo da Esperança e aqueles cuidados pelos jardineiros. “Eu pagava o cemitério, mas o descuido é enorme. A grama fica morta, eles não limpam. Vale muito mais a pena pagar por fora”, afirma.
Ela paga um jardineiro particular há nove anos. “Não concordo com a proibição deles trabalharem. O serviço da Campo da Esperança, infelizmente, está muito aquém do básico. Se essa decisão vigorar, eu vou ter que voltar a ir toda semana ao cemitério para cuidar do cantinho da minha filha”, prevê.
A administradora de empresas Angela Ribeiro mantém um acordo há sete anos com um jardineiro privado para cuidar do túmulo do pai, falecido em 2016. “Comecei pagando a taxa do cemitério, mas não adiantava absolutamente nada porque o jazigo era muito mal cuidado. Mais ou menos um ano depois, contratei um rapaz”.
“Ele [o jardineiro particular] é muito cuidadoso, deixa sempre o túmulo limpo, arrumadinho. Quando faço o depósito do mês, ele envia fotos do túmulo para eu ver como está. Algumas vezes, já fui visitar sem avisá-lo, para saber se estava tudo certinho, e estava”, relata a administradora.
Como solução para o embate, Angela sugere um acordo. “Ficarei muito chateada se o túmulo do meu pai voltar a ficar descuidado. Em último caso, a empresa poderia contratar estes jardineiros. Daí sim eu ficaria feliz em voltar a pagar a taxa do cemitério.”
Como funciona atualmente
O cidadão que paga por um túmulo tem a opção de contratar, junto à Campo da Esperança, a manutenção de jazigo. A empresa oferece dois pacotes: um mensal, de R$ 85,52, e um anual, de R$ 918,75, com 10% de desconto em relação ao primeiro. O serviço não é obrigatório porque o parente pode, por conta própria, cuidar do espaço da forma que preferir. Não há opção de adquirir um serviço diferenciado, como a plantação de árvores, ou algo do tipo.
Já os jardineiros autônomos cobram entre R$ 70 e R$ 80 para aparar e regar a grama, plantar e cultivar flores, dentre outros reparos. Cada profissional tem autonomia para cobrar quanto preferir e negociar diretamente com o parente. Alguns deles também fazem manutenção na estrutura do túmulo, também com o valor combinado junto ao cliente.
Se findarem os recursos e a Justiça decidir que os jardineiros autônomos não poderão mesmo continuar trabalhando nos cemitérios, a maioria ficará sem renda alguma. É o que alega o presidente da Osjacem, Agnaldo Monteiro.
“Se formos impedidos, estaremos todos na rua. Esse trabalho é nossa principal fonte de renda, a maioria de nós trabalha apenas nos cemitérios, diariamente”, relata Monteiro. Ele avalia que os autônomos ganham entre R$ 3,5 mil e R$ 6 mil por mês.
O presidente afirma que a manutenção ofertada pela Campo da Esperança é “precária e insatisfatória” e que a empresa dispõe de poucos funcionários. “As pessoas nos contratam pela insatisfação do serviço precário da concessionária. Eles têm cerca de 20 jardineiros para os seis cemitérios do DF”, aponta o representante da Osjacem.
Agnaldo explica que os 350 jardineiros autônomos amparados pela Osjacem se dividem entre cinco dos seis cemitérios do DF. “Somos, em média, 200 funcionários na Asa Sul; 40 em Taguatinga; 40 no Gama; 20 em Planaltina e 20 em Sobradinho”, calcula.
O que diz a Campo da Esperança?
Ao Metrópoles Campo da Esperança Serviços explica que, ao longo dos anos, “tentou, por diversas vezes, entrar em acordo com esses trabalhadores na tentativa de disciplinar o trabalho deles, propondo, para tanto, fazer um cadastro para mapear os locais de atuação, fazer treinamentos, padronizar os serviços, fornecer uniformes e outros procedimentos”. “Nenhuma proposta foi aceita pela categoria”, alega.
Enquanto os jardineiros e a Osjacem citam a Lei Distrital nº 1.349, de 27 de dezembro de 1996, a Campo da Esperança baseia-se na Lei Distrital nº 2.424, de 13 de julho de 1999, que regulamenta os serviços cemiteriais no DF.
A partir daí, começam as acusações. A Campo da Esperança diz que os jardineiros, “além de não aceitarem acordo”, atrapalham os serviços de manutenção “de forma proposital”. “Como não são fiscalizados e não têm obrigações com o Estado, esse grupo produz entulho e o deixa espalhado pelos campos, quebra tampas de jazigos de clientes deles com pagamentos atrasados, aborda visitantes de maneira inapropriada, oferece produtos fora dos padrões estabelecidos por lei, dentre outras irregularidades”, afirma a empresa.
“O hábito de retaliar clientes que atrasam o pagamento é comum”, diz a Campo da Esperança, sobre os jardineiros. “A prática retaliatória mais comum é o furto das plaquetas de identificação dos falecidos. As peças são retiradas somente de sepulturas que não têm contrato de manutenção vigente com essa categoria autônoma. Somente em outubro de 2024, foram furtadas 500 placas de identificação em Taguatinga”, acusa.
Quanto ao efetivo responsável pela manutenção dos jazigos, a empresa diz que “dispõe de 84 funcionários responsáveis pela limpeza, conservação e manutenção das áreas coletivas e das sepulturas”.
“A manutenção individual dos jazigos é feita mediante contrato dos proprietários de cada unidade. A contratação é opcional (R$ 85,52 por mês ou R$ 918,75 por ano) e apenas 20% dos jazigos têm contrato vigente no momento. A contratação vale por prazo indeterminado, podendo ser cancelada a qualquer momento pelo usuário. Caso a família não queira contratar o serviço oferecido pela empresa concessionária, ela precisa se responsabilizar pela manutenção do local”, encerra o órgão.