Podem me dar licença pra ser feia, faz favor?
Em um mundo de quatro jornadas, ser feia virou atestado político para as mulheres
atualizado
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No ano passado, eu cortei meu cabelo bem curto e pintei de azul. Ficava até simpático no primeiro dia, mas depois, desbotava e era feio pra dedéu. Todo mundo vinha para mim, inconformado: “Mas por que você fez isso? Antes era bem mais bonito!”. Ao que eu respondia, simplesmente: “E quem disse que eu só mudo minha aparência para ser bonita?”.
Sabem qual é? A gente vive dum jeito que mulheres não têm direito de ser feias. Como se eu não tivesse um montão de outras mensagens para passar com meus looks e cortes de cabelo do que ser um bibelô. Meu cabelo azul era eu dizendo: “Olha, eu, por dentro, tô assim meio rebelde. Tô contando para vocês que sou estranha. Me dá licença de ser feia, faz favor?”
Não sou diferentona, não, pessoal. O movimento pelo direito de ser feia existe e tem nome: neutralidade corporal (ou body neutrality, no inglês). A escritora Caleb Luna tem uma frase que eu adoro e resume bem essa ideia: “Embora eu tenha uma enorme quantidade de amor próprio, esse amor está mais ligado a quem eu sou do que ao corpo no qual eu existo”.
Vamos fazer um exercício. Vem comigo você que gosta de meninos. Passe na mente a lista dos carinhas por quem você já se interessou. Não sei vocês, mas eu já até cheguei a dizer pras minhas amigas que “ele tinha um jeito charmoso de ser feio”. Homem pode ser engraçado, brilhante, intelectual, charmoso, amoroso, íntegro, honesto, bem-sucedido. Mulher pode ser tudo isso aí, mas se for feia, está desclassificada.
“Até no emprego, tem que ser bonita. Já trabalhei em lugares em que as funcionárias do comercial eram cobradas de terem as unhas feitas e usar salto.”
E isso vem num contexto histórico em que as demandas sobre as mulheres só se multiplicam. Quando decidiram sair de casa pra trabalhar, as mulheres tiveram que lidar com a dupla jornada de tarefas do lar mais o emprego fora. Mas quando os eletrodomésticos começaram a facilitar nossas vidas, o machismo teve uma outra ideia pra brecar esse avanço. Criou a “terceira jornada”, que seria a beleza.
Ou seja, além de ser boa dona de casa, mãe e competente, agora as mulheres tinham que ser bonitas — como se isso fosse um valor profissional. Uma escritora americana que eu adoro, a Naomi Wolf, chamou essa teoria de “O Mito da Beleza”, num livro que publicou nos anos 1990.E é aí que entra em cena o movimento do “ame seu corpo”. A gente vive um momento em que as marcas de cosméticos e revistas femininas — a que eu dirijo, inclusive — têm entendido que isso é absurdo e se aberto pra ideia de que existem muitas belezas e devemos aprender amá-las e respeitá-las. Sem impor estereótipos para ninguém.
Mas será que a coisa deve parar por aí? Porque, na hora do “vamos ver”, a gente não se acha bonita todo dia. E tudo bem! A gente continua sendo incrível em mil outras maneiras, não é mesmo?
O problema do “ame o próprio corpo” é que ele é um discurso ingênuo e que sobrecarrega as mulheres com mais uma exigência. Vira a “quarta jornada” de trabalho. Pra começar, ele ignora que padrões de beleza existem e a gente sempre vai estar se autoavaliando com essas réguas. Além do mais, porque amar meu corpo não é um movimento para eu fazer sozinha (ou junto com minha terapeuta). É uma transformação que envolve a sociedade em geral, os ensaios de moda, as propagandas, azamiga, os boy magia da balada e etc e tal.
Depois, porque ele cria para as mulheres um novo tipo de pressão: o de ser seguras e confiantes o tempo todo, o que — peloamordemeupaizinho — é uma puta duma exigência gigante!
Então, pessoal, por favor, podem me dar licença pra ser feia? Porque num mundo de quatro jornadas, ser feia virou atestado político para as mulheres.