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O amor (não aquele de contos de fada) é a coisa mais feminista que tem

A única forma de empoderamento real é através do amor: auto, outro, todo, transcendente

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Fui tão absurdamente amada pelos meus pais que fiquei viciada em amor. Ser amada era algo tão bom, tão bom, que valia qualquer violência interna à qual eu precisasse me submeter. Por isso, quando uma tragédia familiar pintou a vida de cinza, dos 12 aos 19 anos, eu ia ser triste escondida, envergonhada, para as pessoas continuarem me amando e me querendo por perto. Encontrei o lugarzinho perfeito: o telhado que eu podia alcançar da janela do meu quarto, tinha uma chaminé.

Eu sentava nela e ficava chorando sozinha, olhando para as estrelas e imaginando o amor da minha vida que eu ainda não conhecia. Pensando onde ele estaria, como me consolaria, resolveria todos os problemas e traria de volta as cores que eu já não podia ver. E em alguma noite daquelas, comecei a escrever-lhe cartas.

Falava das merdas todas, dos sonhos, das angústias e dos meus desajustes. Guardava todas as cartas numa caixinha. O amor-da-minha-vida-que-eu-ainda-não-conhecia havia se tornado meu melhor amigo imaginário. Por ele, eu superei as adversidades e me mantive forte, sim, mas sem desistir de ser doce.

Conheci o João 12 anos mais tarde. Ele era um rapazito aventureiro que cruzava a África sozinho, de sul a norte, por terra, para um livro. Resolvi entrevistá-lo. “Não se sente esmagado pela solidão?” Ao que ele respondeu, com uma frase roubada do meu escritor favorito, Mia Couto: “O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora”.

Me ganhou! Não esperei nem ele voltar da África para me apaixonar. Nos casamos quatro anos depois, à beira de um lago e debaixo de uma fila de árvores frondosas. Todo o clichê romântico delicioso. E, no dia do casamento, eu entreguei para ele a caixa com todas as minhas cartinhas de amor. “Eram todas pra você”, dizia a mensagem de abertura.

Hoje em dia essa história não me parece fofa, mas assustadora: imagine depositar esse tanto de expectativa em alguém! Me espanta que João não tenha fugido e me largado no altar!

Engraçado que, atualmente, estou convicta de que não era para ele que eu escrevia na chaminé. Eu escrevia para satisfazer esse desejo de ser amada. Esse vício de ser querida. Veja: acho que todas nós, mulheres, com nossos romances de José de Alencar, desenhos de princesas da Disney e essa criação maléfica para agradar os outros, vivemos para sermos amadas. Vivemos para achar “O Cara”.

Olha só: ali na chaminé, eu encontrei foi “A Mina”.

Eu me apaixonei não por ele, mas por mim. Por minha resiliência, por como me mantinha afável na adversidade. Eu me apaixonei por minha própria capacidade de amar outras pessoas. Porque, gente, capacidade de amar é o bicho e quase ninguém tem!

Tem algo muito especial naquelas minhas viagens de autoamor na chaminé — amar a si é condição sine qua non para amar o outro. Mas também não vou cair na cilada de achar que estou acima do amortroca.

Quem ama ganha a vida.

Não estou dizendo que as mulheres precisam de companheiro ou companheira para ser feliz. Estou falando é do amor num sentido mais amplo. Amor de filha, de mãe, de amiga, de amante, de irmã. De entrega. Amor, enfim.

Mas me sinto na obrigação de fazer a defesa do amor porque me parece que esse mundo masculinamente frio nos traz a tentação de achar que ganharemos mais quando formos autossuficientes, fortalezas impenetráveis de autoestima. Bobagenzinha de quem ainda não entendeu de que se trata o feminismo de verdade.

Se os homens não sabem amar, azar o deles — ganhamos mais ensinando do que nos vingando. Não consigo contemplar a possibilidade de felicidade sem o outro (ou outra, ou outros), sem a troca, sem o desnudar-se espiritual a que o amor nos obriga.

Desnudar-se espiritual. Acho que é por aí. Mas que sei eu? Vai ver estou errada — mas se estou, definitivamente gosto de estar.

Libertar-se do romantismo dos contos de fada, por outro lado, é libertar-se para o amor. É enxergar que o amor, seja de qual tipo for, é consequência de um amor primeiro, privado, por suas próprias inconsistências.

Nos meus 30 anos de inexperiência, sei que amar o João é algo muito superior àquelas fantasias da chaminé. É amar alguém que erra, que dorme emburrado comigo, que esquece de lavar a louça, que nem repara que cortei o cabelo. Mas que continua aventureiro, intrigante, meu mundo de mistérios.

Abracei o amor quando abracei o erro. Meu, dos outros, essa incapacidade de perfeição que nós temos. Que bonito isso: amamos na incapacidade de perfeição. Toma essa, Branca de Neve! Quiçá um dia aprenderemos que a única forma de empoderamento real é através do amor: auto, outro, todo, transcendente. Porque o amor (mas o amor de verdade mesmo, esse que liberta das amarras dos contos de fada) é a coisa mais feminista que tem.

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