Machismo também é coisa de esquerda
Defender igualitarismo e bandeiras progressistas não livra ninguém dos preconceitos arraigados no nosso inconsciente durante a vida
atualizado
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Na semana passada, todos nós de esquerda ficamos chocados quando o juiz Afonso Henrique Botelho, de Petrópolis, sugeriu em suas redes sociais que algum “brasileiro indignado” desse uma cusparada na cara ou um chute no traseiro da presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Machismo, incitação à violência contra a mulher, falta de educação e decoro. Tudo isso aí.
Mas a reflexão da ativista feminista Manoela Miklos, uma das responsáveis pelo movimento #AgoraQueSãoElas, me fez pensar: “É igualmente ultrajante ler as palavras escritas por alguns e algumas da esquerda sobre a senadora Ana Amélia, responsável pela infeliz fake news envolvendo Gleisi. O que tem sido dito também está embebido em misoginia: aquela ‘juizeca safada’. É daí pra baixo.”
E nos encontramos – nós, de esquerda e de direita – embebidos em machismo. De certa forma, acho bom percebermos: defender igualitarismo e bandeiras progressistas não livra ninguém dos preconceitos arraigados no nosso inconsciente durante a vida. Ainda mais numa sociedade acostumada a tratar com desdém mulheres que se atrevem a meter-se no mundo político. Pelo contrário: tudo isso nos deixa sob o terrível risco de sermos grandes hipócritas.Esses dias descobri que um rapaz de quem eu costumava gostar, cheio de palavras bonitas sobre a igualdade de gêneros, agrediu a namorada. Quase a matou. Fiquei chocada: mas isso aqui, no meu meio?! Não estaríamos salvos pelas longas conversas, pelos protestos dos quais participamos, pelos textos críticos lidos na universidade?
Não, não estamos. E a arrogância de nos acharmos acima de erros cometidos de forma sistêmica por nossa sociedade nos deixa mais vulneráveis, justamente, a repetir esses absurdos de forma desavisada. É essa soberba que gera os desprezíveis “esquerdomachos” e cria feministas racistas ou prontas para apontar o dedo em direção a uma mulher “menos iniciada”.
A hipocrisia não precisa chegar ao nível do meu ex-amigo, da violência descarada. Às vezes, aparece na piada contada na mesa do bar, no meme repassado por WhatsApp, no descaso com os afazeres domésticos, deixando tudo nas costas da companheira, como se tarefas do lar fossem “coisa de mulher”. Vaza nessas coisinhas do cotidiano, justamente aquelas que achamos serem pequenas demais para merecerem nossa atenção.
Nossa salvação, meus caros amigos e amigas de esquerda, está na constante vigilância. Num olhar atento e crítico a nós mesmos, sabendo-nos aptos a falhar. Sabendo-nos, sim, racistas e machistas. A capacidade incansável de desculpar-se e tentar de novo, finalmente, é um mandatório ingrediente final.