Lá vem a Copa, e as repórteres esportivas já estão sofrendo…
Bibiana Bolson, colaboradora da ESPN e uma das criadoras do movimento #DeixaElaTrabalhar, discute o machismo na profissão
atualizado
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A Copa do Mundo 2018 está chegando e, junto com ela, a ansiedade para saber se Neymar vai continuar brilhante após a cirurgia, se vamos limpar o nome depois da humilhação de 2014, se o técnico Tite escalou uma seleção matadora… Nos bastidores do evento, no entanto, há um problema sério para o qual não estamos olhando: as diversas formas de machismo sofrido pelas mulheres que decidem cobrir eventos esportivos.
Por isso, um grupo de 52 apresentadoras, jornalistas, produtoras e assessoras de vários veículos e emissoras esportivas criaram a campanha #DeixaElaTrabalhar, que ganha novo fôlego com a chegada da Copa. A ideia é questionar se o “beijo roubado” da repórter ao vivo é mesmo “engraçadinho” ou se uma profissional de jornalismo deveria apenas ser vista como um item de decoração na sua televisão.Nesta entrevista, Bibiana Bolson, colaboradora da ESPN e uma das criadoras do movimento, alerta sobre o problema e aponta caminhos para resolvê-lo. Ela atesta: a responsabilidade é de todos nós, inclusive do torcedor.
No jornalismo esportivo, você vivenciou muitas situações de assédio?
São 12 anos de jornalismo, boa parte desse tempo cobrindo esportes. Passei por diversas situações de assédio, preconceito, machismo e até mesmo de violência. Alguns casos, dentro da própria redação.
Pode me contar um caso de assédio que tenha ocorrido contigo cobrindo esportes?
É difícil eleger apenas um. Mas posso contar aquele que gerou um grande trauma. Certa vez, recebi inúmeras bravatas de torcedores on-line. Ameaçaram minha integridade física, meus familiares. Passei a ficar paranoica, sentindo que estava sendo observada e perseguida. Ficava insegura na rua e tive de fazer terapia. Com o tempo, percebi: é exatamente esse o desejo do agressor, intimidar. Hoje, eu enfrento, bato de frente.
Que outros tipos de machismo as correspondentes esportivas enfrentam além do assédio?
A violência nos estádios e os xingamentos de torcedores são os mais comuns. Mas, na verdade, há outras formas também, mais significativas na minha opinião. Dentro das redações, muitas escolhas são feitas baseadas no gênero. Algumas matérias são quase na totalidade executadas por homens. Repórteres são desacreditadas e interrompidas nas reuniões de pautas. A relação com a fonte é mais complexa, o acesso à informação é dificultado pelo fato de sermos mulheres. São desafios diários. E há também as brincadeiras dos próprios colegas.
Por que mulheres que cobrem esportes enfrentam o machismo tão intensamente? Não seria uma maneira de dizer “este não é o seu lugar”?
As mulheres são assediadas todos os dias, em diversas situações. Mas, no esporte, por uma questão sociológica, talvez essa situação fique mais evidente. A prática esportiva sempre foi destinada para a força bruta, para reforçar a ‘masculinidade’. E sempre delimitou espaços também: o do negro, o do branco, o do rico, o do pobre, o dos homens e o das mulheres.
No entanto, os tempos mudam, nossos processos civilizatórios também, logo, os discursos devem se modernizar nesse sentido. O conceito de jogo limpo atual, por exemplo, surgiu apenas no século 20, em especial com a criação de regras. O feminismo, essa busca por direitos iguais, apareceu recentemente. Não estamos exigindo nada novo, mas algo muito necessário. É uma insistência constante, uma luta que não termina.
Por que criaram a campanha #DeixaElaTrabalhar?
Porque era necessário nos unirmos. Era preciso que nossa voz fosse ouvida de forma mais alta. O protesto surgiu de forma orgânica. Era um grupo pequeno, virou um grupão e, agora, estamos em contato frequente para novas mudanças acontecerem. A responsabilidade é de todos.
Qual a melhor maneira para a sociedade mudar essa situação? Qual a responsabilidade de cada um?
Primeiro, temos a urgência de desconstruir nossos próprios discursos diários. Independentemente do sexo, precisamos repensar condutas, conceitos e ideias. É necessário denunciar o assédio, o machismo e a violência de forma geral.
Os clubes têm responsabilidade na relação com os torcedores. As chefias são responsáveis pelo ocorrido nas redações. É trabalho coletivo entender que se trata de um assunto sério que não deve ser “amenizado”.
O #DeixaElaTrabalhar veio como um soco no estômago de quem acha que essa situação é normal, mas precisa funcionar como aquele lembrete tocando no celular ou no despertador todos os dias. Temos de estar atentos aos nossos gestos e palavras. E isso deve ser feito de maneira conjunta.