Quase-biografias são a mistura de ficção, realidade e muito talento
Combinando fatos e personagens fictícios, o romance histórico é um que vale dois
atualizado
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Livros biográficos são muito populares. Trata-se de um dos gêneros mais comuns da literatura não ficcional. Geralmente os personagens retratados são figuras públicas, como artistas, atletas, empresários e lideranças políticas. A minha formação de leitor inclui muitas biografias.
Lembro que a primeira compra que realizei com meu primeiro salário oficial, aos 16 anos, foi a biografia de Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, “Chatô – o Rei do Brasil”, assinada por Fernando Morais.
Outro momento marcante com relação às biografias foi a minha primeira tatuagem, aos 15 anos. Lembro-me da dor da agulha, enquanto lia, na cadeira do tatuador, a biografia da Olga Benário, esposa de Luís Carlos Prestes – livro do mesmo Fernando Morais, certamente o escritor de biografias mais conhecido do Brasil – escreveu também a biografia de Paulo Coelho.
Há uma celeuma atualmente em torno das biografias não-autorizadas, especialmente de artistas ainda atuantes. O próprio Fernando Morais – que aliás se envolveu recentemente em uma polêmica com o Senador Cristovam Buarque sobre sua posição política – é crítico das tentativas desses artistas de proibir a circulação dos livros que contam suas vidas, incluindo aspectos picantes. Alegam que isso pode prejudicar suas carreiras. Mesmo assim, as biografias seguem em alta.
Auto-biografias não me agradam muito. Confesso. Parece marketing pessoal, apesar de saber que algumas vidas tem de ser contadas pelo próprio mesmo, ainda mais se escreve bem. Mas eu não queria falar especificamente de biografias. Eu queria falar de quase-biografias.
A biografia é popular porque os personagens têm boas histórias. E porque o leitor reconhece parcelas da sua própria vida na narrativa. Aí que entram os romances históricos e o que eu gostaria de chamar aqui de quase-biografias. Os romances históricos ambientam uma ficção dentro de um contexto real, misturam, assim realidade e ficção. E as quase-biografias?
As quase-biografias fazem a mesma coisa (um alerta: você não vai encontrar essa classificação em nenhum lugar, pois oficialmente são apenas romances). Seus personagens, entretanto, apesar de fictícios são inspirados fortemente em personagens reais.
Produzir uma quase-biografia é um risco – sempre pode haver mal-entendidos, alguém pode sair chateado, mas também livra o autor de discutir seriamente com o retratado se ele – o autor – tinha ou não direito de escrever a história.
E há duas dessas obras, que chamo de quase-biografias, que recomendo fortemente. A primeira é uma espécie de Forrest Gump brasileiro. Trata-se do livro “O Canalha”, de Chico Anysio, lançado pela Editora Globo, em 2001.
Forrest Gump é um livro de Winston Groom, de 1986, que virou filme de Robert Zemecks, multipremiado no Oscar de 1995. Em ambos os casos, o protagonista participa de quase todos os momentos históricos importantes de seu país – Estados Unidos, no caso de Forrest Gump, e Brasil, no caso do Canalha.
Chico Anysio é, sem medo de errar, um dos três atores brasileiros mais completos, mas não é tão conhecido do grande público como escritor. Uma injustiça – tem pelo menos vinte títulos publicados, sendo o primeiro de 1972. Escreveu até o final da vida, tendo publicado o último em 2011, um ano antes de sua morte.
Em “O Canalha”, explora os grandes marcos da história nacional a partir da atuação de seu personagem nos bastidores. Genival, o nosso Forrest Gump, teria atuado em todos os governos, desde 1945 até o ano da publicação do livro. Seria peça-chave de muitos acontecimentos que marcaram o país. Teria, por exemplo, dado a Getúlio o revólver com o qual o presidente se suicidou. Teria sido responsável pelo apelido de JK a JK, por convencê-lo a transferir a capital do Rio para Brasília, dentre tantas outras peripécias.
O livro é hilário e, como se não bastasse, tem notas explicativas sobre os personagens reais citados e sobre os fatos históricos. Ou seja, dois em um, uma quase-biografia e um livro didático de história. Genival é uma mistura de muita gente. Só Chico Anysio poderia nos dizer quem foi sua – ou suas – fontes de inspiração. Uma pena, o livro está fora de catálogo e só pode ser comprado em sebos e afins. Entre na Estante Virtual e divirta-se.
A outra-quase biografia que gostaria de indicar é o livro “O Punho e a Renda”, de Edgard Telles Ribeiro, publicado pela Record, em 2010. O livro conta a história de um diplomata fictício que percorre todas as posições ideológicas possíveis em nome de sua carreira. O livro narra a participação e influência do personagem em várias passagens da história política do país, a partir de suas posições no Ministério. Tal como o Canalha, de quem me lembrei imediatamente quando li “O Punho e a Renda”, o personagem principal, apresentado como Max, aufere muitos dividendos de sua, digamos, flexibilidade moral.
Fiquei intrigado com o personagem, que segundo o autor – ele mesmo um diplomata de carreira -, é uma mistura de várias histórias que recolheu durante seus anos de Itamaraty. Fui pesquisar para verificar se conseguiria decifrar sua identidade. Acho que descobri, mas ainda não tive a oportunidade de checar com o autor se meu palpite é correto. Um curso de história recente do país, a partir do olhar atento de dois belos ficcionistas. Aproveite.
Aproveito para fazer minha combinação de ficção e realidade e cobrar publicamente uma figura que me prometeu um romance histórico há alguns meses e só me enrola: “O Homem que Amava os Cachorros”, sobre o exercício de escritor sobre a vida de Leon Trotski no México. Fiquei curioso. Estou esperando.
Um fusca
vermelho bala soft
naquele morrinho
vermelho
cor de bala soft
como a cara
dos caras
que empurraram
morreu
ali ó
pó pó pó
no longe o vi ainda
e ó
pegou
redondo e soltando fumaça
pra dentro da boca sem dentes
do túnel
Angélica Freitas, Rilke Shake, 2007