Há arte, música e literatura muito boa produzida fora do Plano Piloto
Samambaia, Recanto das Emas, Taguatinga, Planaltina e São Sebastião respiram movimentos culturais que renovam a cena do Distrito Federal
atualizado
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Na semana passada fui ao lançamento do livro “O tapete voador” (Ed. Malês), de Cristiane Sobral (na foto principal à esquerda), atriz e escritora carioca, radicada no Distrito Federal. São 16 contos, com temáticas desafiadoras, como a violência e a discriminação racial. Cristiane é figura conhecida no meio literário brasiliense, não apenas pela qualidade da sua obra, mas também por sua militância, especialmente no Movimento Negro.
Apesar da notoriedade alcançada por aqui, Cristiane segue dando valor aos diversos movimentos marginais de produção literária. Até por isso, há um espaço literário com seu nome, no Recanto das Emas, dentro do Espaço Cultural Ubuntu, onde também foi lançado o “Tapete Voador”.
A lembrança foi o estalo para eu finalmente escrever este texto, que planejava havia algumas semanas, sobre a literatura que está sendo produzida nas margens, na periferia, que não deve nada àquela dos grandes centros. São poucas as publicações tradicionais, mas os jovens artistas vão dando seus pulos, com saraus, batalhas de rimas, livros artesanais e zines.
Recanto
O Ubuntu é uma espécie de oásis para os jovens que querem produzir e consumir arte na região do Recanto e do Riacho Fundo. Nasceu da iniciativa do professor Francisco Celso, que, inicialmente, organizava saraus em sua casa. Os saraus foram crescendo e ele montou um misto de bar e centro cultural, para receber os jovens artistas.
Fui a uma edição do Saraubuntu organizado com a ajuda do Sindicato dos Escritores. Chorei. Literalmente. Dá a impressão que os jovens ainda nem tomaram consciência de quão belo é seu material. Natália Cristina, Paola Tainan, Pedro Henrique, Júlia Sagatiba e Isadora Santos são alguns dos jovens talentos que agitam aquela região. Poesia de primeira, melodia bem arrumada e pegada na interpretação.
Taguatinga
Mas não é apenas no Recanto que o bicho está pegando. Há uma semana, conheci as meninas da Anillá, que divulgam sua poesia e sua música a partir de Taguatinga. Além da marginalidade geográfica, enfrentam a marginalização da pauta LGBT, traço que une as componentes da banda, mas não necessariamente é a bandeira principal de suas músicas.
A pegada da Anillá lembra muito a da banda Blind Mellon, com poesias com rimas redondas, sobre uma base de violão mais ou menos simples, mas com bastante variação de velocidade e sonoridade. Vale conhecer. Aliás, para conhecer outros artistas da cena de Taguatinga, é uma boa ir ao Mercado Sul (QSB 12/13), para ver a potência da rapaziada.
São Sebastião
São Sebastião também segue contribuindo para a qualificação da produção periférica. Pelo menos dois grupos produzem com regularidade: o Supernova e os Radicais Livres. Vinícius Borba, com o seu “Fora da Ordem”, segue com os Radicais Livres. Já o Supernova tem o veterano poeta Paulo Dagomé como maestro, mas há outros artistas se destacando, como Ricardo Caldeira, que lança algo em breve, e os próprios filhos de Dagomé, Zeca e Priscilla.
Planaltina e Samambaia
Em Planaltina, é o teatro e a tradição da poesia oral que se destacam e, nesse campo, chamo atenção para Luiz Felipe Vitelli e Raquel Ely. Vitelli apresenta o programa Sarau Nacional, uma vez por mês, na Rádio Nacional, e acompanha como poucos a cena de produção da periferia.
De Samambaia é a poetisa Meimei Bastos, que lançou neste ano seu livro “Um verso e mei”. Meimei é oriunda dos movimentos culturais da cidade, que também ajuda a agitar, como o Sarau Complexo e o Espaço Imaginário Cultural. Ela integra a Frente Feminina Periférica e atua constantemente nas batalhas de rima no DF, tendo participado de batalhas em São Paulo, representando o quadradinho. Tem nas contradições do DF a matéria-prima de sua obra.
Alguns artistas militantes da produção marginal estão com o pé na estrada há algum tempo, atuando na produção independente em várias frentes. É o caso, por exemplo, do rapper Afroragga, integrante da banda MOVNI, que dá capacitação a outros artistas; e da multiartista Tatiana Nascimento, que acaba de lançar o livro de poemas “Lundu”, com produção artesanal. Tatiana também entoa seus poemas, com temática social, juntamente com sua banda: Tatiana Nascimento Y Água.
Há alguns eventos que congregam parte dessa produção, mas dificilmente conseguem reunir todos de uma só vez, já que as cidades não são próximas. Alguns deles: o “Circuito É Nós nas Quebradas”, realizado na Ceilândia, Paranoá, Samambaia e Recanto das Emas; a “Batalha Sagrada”, realizado no Espaço Cultural Ubuntu; e as batalhas livres de rimas, aos domingos, ao lado do Museu Nacional, e às quartas, atrás do Cine Brasília. Recomendo fortemente. Vai se surpreender com a qualidade.
Vívido
(living)
Não senhores não se importunem
com essa indisfarçável tristeza,
tristeza por nada, repentina,
que nada aplaca ou anima.
Não é amarga, não tem ranço,
não empesta o ar nem arrasa,
é como um pássaro batendo asas
pela casa
adentro, já passa.
Pedro Amaral, Vívido (Sette Letras, 1995)