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“Flor Negra” e “Mudança” são respostas artísticas à realidade

Mao Yan e Kim Young-ha produziram livros ao estilo de Gabriel García Márquez, escritor colombiano que recebeu o Prêmio Nobel em 1982

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Como escrevi, nas duas últimas semanas, sobre livros para conhecer a China e sobre dois escritores latino-americanos, gostaria de apresentar a vocês, na coluna de hoje, dois romances, um da Coreia do Sul e outro da China, cujos autores têm extrema similaridade com o realismo fantástico produzido na América Latina, ao estilo de Gabriel García Márquez. Trata-se de “Mudança”, do chinês Mo Yan, e de “Flor Negra”, do coreano Kim Young-ha.

Mo Yan foi o segundo chinês a ser agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 2012. O primeiro havia sido Gao XingJian, em 2000, mas este já estava exilado na França desde 1987. Mo Yan foi, assim, o primeiro Nobel comemorado pelo governo chinês. A ironia é que o nome adotado pelo escritor (que, na verdade, se chama Guan Moye) significa “Não Fale”, em referência a um conselho recebido dos pais, em virtude da repressão da Revolução Cultural que imperava na China até a década de 1970.

Mo Yan iniciou sua carreira como escritor em 1981, quando ainda estava servindo no Exército. Sua obra mais famosa, entretanto, é de 1986: Sorgo Vermelho (“Red Sorghum”), ainda sem tradução para o português, sobre a saga de uma família do interior da China. A obra, adaptada para o cinema, ganhou o Urso de Ouro de 1987, e contém claros elementos do realismo fantástico.

O livro que trato aqui, porém, é “Mudança”, de 2009, talvez o único de Mo Yan que não apresente o realismo fantástico, talvez por se tratar de um livro de memórias. Conta a história de dois colegas de escola da cidade natal, entremeados com momentos de narrativa em primeira pessoa.

A história começa em 1969 e vai até os dias atuais e apresenta, sob os relatos pessoais, e em pouco mais de 120 páginas, uma fotografia das mudanças sociais pelas quais o país passou nesse período. As fazendas coletivas, o peso do partido e da burocracia no interior, o aparecimento do capitalismo seletivo, os novos ricos, o tráfico de favores. Esse é, aliás, o grande trunfo do livro. No campo da ficção, complementa primorosamente aquela lista de que falei aqui duas semanas atrás.

O Nobel, que veio depois do importante prêmio Mao Dun, concedido a cada quatro anos, e recebido por Mo Yan em 2011, dividiu opiniões. O escritor recebeu críticas por pretensamente não defender os escritores chineses perseguidos pelo regime. O próprio, inclusive, teve um livro tirado de circulação na China “Peito grande, ancas largas”‘, na tradução portuguesa (realizada antes da censura), que apresenta um século da sociedade chinesa sob a ótica feminina. Mas Mo Yan não é alheio aos problemas chineses. Em Sapo (“Frog”), também sem tradução ainda, ele trata do drama dos abortos forçados, estimulados pela política de filho único do país.

O coreano “Flor Negra”, por sua vez, é a própria combinação de “Guerra e Paz”, de Tolstói, com “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Marquéz. Lançado em 2003, e traduzido ao português em 2014, o livro congrega os melhores elementos do romance histórico e do realismo fantástico. Conta a história de um grupo de imigrantes coreanos que embarcam em direção ao México no início do século XX fugindo da fome e da crise política. Trata de um período de profunda transição: o fim do sistema semifeudal em ambos os países.

O enredo é muito mais dramático em “Flor Negra” do que em “Mudança”, mas em ambos podemos identificar os elementos históricos que moldam as vidas dos personagens e são o pano de fundo para seus dramas. Os romances e casos de amor, em ambos, não sobrevivem à aspereza da realidade nua e crua.

Coincidentemente Young-ha, como Mo Yan, também fez parte do aparato estatal, antes de se tornar escritor em tempo integral: foi investigador de polícia. Assim como o chinês, é autor de mais de dez livros, ganhador de vários prêmios importantes em seu país e teve obras adaptadas para o cinema, em produções coreanas.

Chama atenção a presença de elementos tão semelhantes com o realismo fantástico em obras produzidas do outro lado do mundo. É que esse tipo de narrativa nasce da necessidade de descrever artisticamente o modo de pensar em sociedades rurais, às vezes até com religiões politeístas, que organizam suas vidas a partir de lógicas complexas não lineares. Esse é exatamente o caso da cultura das civilizações pré-hispânicas, no caso da América Latina, mas também da Coreia semifeudal e do interior da China, no final do século 19 e início do 20. É a resposta artística à complexidade que tem aspecto externo de simplicidade. Viaje e divirta-se!

Agenda de Lançamentos
– 23/08, quarta-feira, a partir das 19h30, Martinica Café (303 Norte) – “Hiatos” (poemas), Alexandre Marino.
– 24/08, quinta-feira, a partir das 19h30, Carpe Diem (104 Sul) – “Todos os abismos convidam para um mergulho” (romance), Cinthia Kriemler.
– 26/08, sábado, a partir das 16h, Banca da Conceição (308 Sul) – “João de Barro” (romance), Miguel Sartori.
– 27/08, domingo, a partir das 16h, Cervejaria Criolina (SOF Guará) – “João de Barro” (romance), Miguel Sartori.

 

Paraíso

A fruta amadurece.
Todo mundo come.
A mulher amadurece.
Ninguém me come.

Que vontade de ser
uma mulher
fruta da época.

Carla Andrade, “Caligrafia das Nuvens” (2017)

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