Coleção Leste reúne o melhor da literatura russa moderna em português
Da literatura universal, uma das mais grandiosas certamente é a russa, especialmente sua produção do final do século 19 e início do 20
atualizado
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Da literatura universal, uma das mais grandiosas certamente é a russa, especialmente sua produção do final do século 19 e início do 20.
A Rússia passou, nesse período, por profundas experiências sociais e políticas — guerras napoleônicas, Revolução Russa, urbanização acelerada, Primeira e Segunda Guerras Mundiais –, que alteraram de maneira muito rápida sua realidade social, proporcionando um ambiente com alta carga dramática, propício para a discussão de temas universais, por meio da literatura e do teatro.
Daí o aparecimento de uma grande quantidade de obras essenciais e de grandes autores, como Dostoiévski, Tolstoi, Maiakovski, Gógol, Tchekhov, Górki, Pasternak e Chalamóv.
É esse material que faz parte da “Coleção Leste”, que reúne o melhor da prosa russa em português. A coleção foi lançada em 1994 pela Editora 34, e a ideia do poeta Nelson Ascher, curador e coordenador do projeto inicial, era lançar no Brasil autores de países do Leste Europeu desconhecidos por aqui. Hoje, entretanto, a principal vertente da coleção é a produção russa.
A bem da verdade, a Rússia só entrou no projeto em 1999, com a publicação da obra do poeta Aleksander Puchkin. Tão importante quanto a publicação do primeiro russo na coleção, é a entrada em cena de Boris Schnaiderman, que traduziu esse material.O professor ucraniano foi o principal tradutor e divulgador da literatura russa no Brasil e foi o responsável por sua popularização – tanto prosa como poesia – no Brasil e pela formação de outros tradutores igualmente produtivos e de excelência, como os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Com ele, os russos passariam a ser a prioridade da coleção.
Boris Schnaiderman faleceu em maio deste ano, em São Paulo. Nasceu em 1917, no mesmo ano da Revolução Russa, veio para o Brasil em 1925, aos oito, e se naturalizou em 1941, aos 24. Foi membro da Força Expedicionária Brasileira, tendo combatido na Segunda Guerra Mundial e, em 1961, foi o primeiro professor do recém-criado curso de russo da Universidade de São Paulo.
Foi o responsável pelas primeiras traduções das obras de muitos dos principias autores russos diretamente do russo para o português – antes dele, as traduções eram de segunda mão, vertidas majoritariamente do francês. Em 1983 ganhou o Jabuti, na categoria Estudos Literários, com seu livro de ensaios sobre a obra de Dostoiévski.
Voltando à Coleção Leste, foi exatamente a publicação de uma das principais obras de Dostoiévski – Crime e Castigo -, em 2009, que elevou o patamar das tiragens e deu novo fôlego ao projeto, impulsionando as vendas. Agora, já são mais de 50 títulos, a grande maioria de russos, com um panorama muito significativo dessa escola literária. As traduções têm o apoio do Instituto de Tradução da Rússia.
Na coleção, além dos clássicos Crime e Castigo e Irmãos Karamazov, de Dostoiévski; dos contos de Tchecov; do teatro completo de Gogol; e da poesia de Puchkin, que dispensam apresentação, destaco os três volumes dos “Contos de Kolimá”, de Varlam Chalamóv, e “O Marcador de Página e outros contos”, de Sigismund Krzyzanowski. Ambos os autores puderam ser lidos no Ocidente apenas depois do fim da União Soviética, com a abertura política da glasnost.
“Contos de Kolimá” é, em si mesmo, uma coleção de seis volumes, dos quais três já traduzidos na Coleção Leste. Trata-se de uma compilação crua e sem meias palavras de histórias vistas e vividas por Chalamóv durante os vintes anos – isso mesmo, vinte anos – em que ficou preso ou exilado nos campos de trabalho forçado na Sibéria, os “gulags”. Kolyma é o principal rio da região. O extremo da fome, a loucura da solidão e a desesperança são apresentados sem maquiagem em seus contos.
Já “O Marcador de Páginas” conjuga seis contos de Krzyzanowski, autor que viveu de 1887 a 1950, mas não teve nenhum livro lançado em vida – teve as publicações censuradas pelo regime soviético ou, no caso de seu último livro, cancelada pela falta de papel durante a Segunda Guerra. Sua obra só foi recuperada mais de 30 anos após a sua morte, com a abertura política. A matéria-prima dos contos é o cotidiano russo do início do século 20, mas eles são recheados de críticas à modernidade e ao sistema político vigente.
As principais ausências da Coleção Leste, no caso da literatura russa, são:
1. Boris Pasternak, autor de “Dr. Jivago” e ganhador do Nobel de Literatura em 1958 (que não foi autorizado a receber por razões políticas)
2. As principais obras de Tolstoi – Guerra e Paz e Anna Karenina. Desse autor, a coleção traz apenas alguns títulos, como “A morte de Ivan Ilitch” e “Felicidade Conjugal”. Há uma explicação para a ausência dos dois títulos: os direitos foram comprados pela Cosac Naify, que os editaram de forma primorosa – vale a pena
3. A poesia russa. Além de Puchkin, não há nenhum volume de poemas na coleção. Maiakosvski aparece apenas com a obra teatral “Mistério-bufo”. Nesse caso, se você quiser se aprofundar um pouco na poesia russa, a melhor pedida é o já clássico “Poesia Moderna Russa”, editada pela Perspectiva, com poemas de Aleksander Blok, Vielimir Khlébnikov, Anna Akhmátova, Sierguie Iessiênin, além de Maiakovski e Pasternak, dentre outros, traduzidos por Boris Schnaiderman e os irmãos Campos. Uma experiência um pouco mais radical é a versão bilíngue “Poetas Russos”, da editora portuguesa Relógio d’Água, com textos dos principais poetas russos, traduzidos por Manuel Seabra
Acrobata
Sucesso na vida.
Um plano de carreira
Aposentadoria planejada
Lápide no cemitério.
Não tenho nada disso.
Sou um caso sem critério.
Meu currículo não Lates
mas morde.
Minha poesia não explode
mas contamina
Contra a morte precoce
não conheço melhor vacina.
Edson Cruz, Ilhéu (Patuá, 2013)