“Beleza Estranha”: livro de jornalista é baseado em uma história real
Escrito por Tércio Ribas Torres, o livro se assemelha à “Tempo Seco”, obra da também jornalista Clara Arreguy
atualizado
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Quantas vezes você já ouviu uma história e pensou que ela renderia um livro? Na maioria das vezes, fica por isso mesmo e todo mundo toca a vida, sem que aquela avaliação tenha algum efeito prático. Pois não foi isso que aconteceu com os casos que o jornalista Tércio Ribas Torres ouviu de um amigo de trabalho. Depois de muitos anos, as histórias viraram um livro: “Beleza Estranha” (em foto de Paola Aleksandra), relançado pela Chiado, em 2016.
Ao ler “Beleza Estranha”, não pude deixar de traçar paralelos com o livro “Tempo Seco”, da também jornalista Clara Arreguy, lançado em 2009, pela Geração Editorial, depois de ser selecionado em edital do FAC.
Ambos jornalistas, ambos mineiros, ambos apaixonados por futebol, ambos contando a historia de uma família, desde a década de 70, que chega a Brasilia, trazendo traumas, memórias e segredos. Ambas as famílias marcadas pelos eventos que deram início aos partidos de esquerda pós-ditadura, mas não no centro do tablado. São histórias paralelas, onde a política é apenas um dos elementos.
Os paralelos ficam por aqui, porque o estilo, o formato e a proposta de narrativa são opostos. Mas há um outro ponto que une as duas obras: o estranhamento com a cidade, expresso de forma diferente, mas presente em ambas.
Em “Tempo Seco”, a narradora verbaliza a solidão com todas as letras. Em “Beleza Estranha”, o autor faz um protesto silencioso, mas radical: apenas o protagonista tem nome próprio. Nada mais – personagens, cidades, bairros, mesmo o tempo – recebe tratamento específico. Pelas entrelinhas sabemos que a família veio do Rio, fugida, para Brasilia.
A partir daí, tudo é voluntariamente impessoal. O autor conta que a ideia de radicalizar foi inspirada numa obra do irmão, que, numa tira de jornal, retira o nome de um dos personagens, morador de rua, para mostrar sua invisibilidade. Como em Brasília tudo fica invisível, ele resolveu aplicar na obra a mesma lógica.
Tércio é jornalista do Senado e “Beleza Estranha” é seu primeiro romance. Ele conta que começou a escrevê-lo em 2001, mas apenas em 2014 o volume foi publicado pela primeira vez. A editora faliu e o projeto foi encampado pela Chiado, que relançou o livro neste ano.
A publicação conta a história de Roberto, sua família, e as agruras da “correria” de uma vida em Brasília. O ponto alto do livro é exatamente a quantidade de pequenas histórias com as quais se constrói uma vida. Não tem nada monumental ou transcendental, apenas a imersão em uma vida recheada de realidade mundana, mas que, às vezes, resvala o realismo fantástico ou o materialismo mais duro.
Algumas passagens, de tão pitorescas, até mereciam mais espaço, como o dia em que Roberto rouba, fingindo ser uma arma seu dedo indicador, a pessoa que imaginou ser quem roubara seu relógio dentro de um ônibus. Ou quando decide começar a ler cartas numa tenda de tarô, sem nenhuma cerimônia, apenas porque estava precisando de dinheiro. Roberto tem uma carga elevada de religiosidade – de todas as vertentes. Isso vai aparecendo no livro aqui e ali, sem ser cansativo.
Depois de ler o livro, dá até vontade de conhecer o verdadeiro Roberto, o homem que inspirou a obra. Lembramos, em seguida, que conhecemos vários Robertos ao longo de nossas vidas. Poucos, entretanto, organizam as pequenas histórias numa boa sequência, como estão em “Beleza Estranha”.
Entre nomes e histórias
Já “Tempo Seco” obedece outra lógica. Miriam, a narradora, vai intercalando sua própria historia com a de Natinho e sua família. Miriam empresta muito da autora. Jornalista, mineira, recém-chegada a Brasília, cheia de vazio no peito. Além de Natinho, Miriam vai contando a historia de uma grande família de taxistas, com quem divide grande parte de seu tempo, já que optou por não ter carro, justamente em Brasília, a cidade-autódromo.
Ao contrário de “Beleza Estranha”, em “Tempo Seco”, todos os anônimos taxistas brasilienses, ou, agora, motoristas de Uber, que passam invisíveis por nossas vidas, ganham nome e história. Seja por necessidade – para espantar um pouco da solidão – ou por gosto – a curiosidade inerente a quase todo jornalista que não seja preguiçoso -, Miriam vai ouvindo e compartilhando os dramas de seus amigos da praça.
O registro histórico – absolutamente tudo com nome e sobrenome, para que nada seja invisível – do momento do Mensalão, é especialmente interessante, ainda mais agora, depois do processo de impeachment. Vale a pena ler até mesmo como documento do cotidiano, de um momento especifico da história que dialoga tanto com o atual.
Mas é a historia de Natinho que ganha corpo. De aluno brilhante na Federal da Paraíba a funcionário pioneiro da tecnologia do Banco do Brasil, Natinho virou taxista. O amor de juventude, o irmão medico em Cuba, o pai vereador tardio na pequena Cabedelo. O amigo fiel que aceita perder a amizade para falar a verdade para quem está cego. Os irmãos desconhecidos, desnaturados, espalhados pelo mundo. Todos os dramas de Natinho vão sendo desfiados com pitadas de melancolia de Miriam. Não será difícil para moradores de kits e apartamentos mobiliados de um quarto no Plano Piloto se reconhecerem em Miriam.
Não será difícil quase chorar lendo o desfecho da história do Velho Leôncio e de Dona Maria, os pais de Roberto, talvez o momento mais duro do livro. Não, não é a morte que dói. É outra coisa. Está tudo ali.
Historias de Neto
São muito chatas
Mas esta vale a pena
A babá
mocinha treze catorze anos
resistiu quanto pôde
mas acabou que
confessou tudo
Só que o tudo era outra coisa
muito pouco
quase nada
cinco reais um lençol um quilo
de arroz
o Cartier, negou
Ele três aninhos só ouvindo
e
de repente:
(nunca vi criança tão inteligente)
Mas que perigo
podiam ter roubado
a minha chupeta
Chico Alvim, “O Metro Nenhum” (Cia das Letras, 2011)