Alan Pauls e Alejandro Zambra: autores essenciais da América Latina
Apesar da proximidade, pouco consumimos da produção tão interessante da Argentina e do Chile
atualizado
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Nesta semana, gostaria de apresentar-lhes dois escritores hispânicos que têm excelentes obras traduzidas para o português. Apesar da proximidade, pouco consumimos da produção tão interessante desses países.
São eles, o argentino Alan Pauls e o chileno Alejandro Zambra. O primeiro é autor da trilogia “História do Pranto”, “História do Cabelo” e “História do Dinheiro”. O segundo, que escreve em vários gêneros — poesia, conto e romance –, é o autor dos romances “A Vida Privada das Árvores” e “Formas de Voltar para Casa”, além de “Meus Documentos”, volume de contos, do qual trato hoje.
“História do Dinheiro”, a obra de Pauls que comento hoje, foi lançada em 2014 e fecha a trilogia iniciada em 2008. A narrativa é direta e cortante, sem concessões para o leitor. Narrado em terceira pessoa, não sabemos o nome do protagonista, tampouco há variação temporal dos verbos — todos no presente. Não há nem divisão em capítulos, que poderia ajudar a quebrar a tensão.
A narrativa, entretanto, se explica. E o leitor consegue se localizar na história, com diversas chaves. Estamos na Argentina, década de 1970. Depois, no Rio de Janeiro, o que pode interessar ao leitor brasileiro. A ponte aérea Rio-Buenos Aires tem sua importância na trama. Política, arte, filosofia e drogas também estão no roteiro.
Mas e o dinheiro? Não, você não vai conhecer a história da grana, mas ela ajuda a contar a história. Na verdade, a marcação do tempo — que não aparece no tempo dos verbos — é a própria moeda, que muda em países com inflação alta e planos econômicos, como tantos países latino-americanos na década de 1970 e as seguintes.
O dinheiro que perde seu valor no tempo é o mesmo que marca o tempo desse romance.
Alejandro Zambra, por sua vez, aparece aqui com um livro de contos, “Meus Documentos”, apesar de jogar em todas as posições. O chileno, por exemplo, já havia publicado dois livros de poemas, antes de lançar seu primeiro romance, “Bonsai” (2006), pelo qual começou a chamar atenção da crítica local — ganhou vários prêmios, incluindo o do Conselho Nacional do Livro.
O título, o mesmo do primeiro conto da obra, faz referência à pasta de arquivos pessoais do computador — tema recorrente ao longo das 11 histórias do livro. A maior parte dos contos tem um personagem masculino central, da mesma faixa etária do autor, o que nos indica a provável presença de uma série de referências pessoais, mas nada que se confunda com uma autobiografia.
Romances, viagens, lembranças da escola e dificuldades da vida cotidiana são utilizadas como justificativas para tratar de sentimentos comuns, em situações comuns, às vezes ridículas, mas de maneira detida, como quando esmiuçamos um alimento que não vamos mais comer, apenas para ver sua textura interna. Namorados que não são namorados, ou o primo que deseja a esposa de outro primo são personagens incompletos do ponto de vista da descrição tradicional, mas que cumprem sua função de atrair o olhar para aspectos específicos da vida banal.
Para o leitor brasileiro, é interessante ver o lado “chileno” das narrativas, como em “O homem mais chileno do mundo” ou em “Obrigada”, um conto que tem um “chileno”, uma “argentina” e um “espanhol”. Não, não tem nada a ver como o estereótipo corrente no Brasil dessas nacionalidades. A lente é outra. Experimente.
Agenda de lançamentos
– Quinta-feira, a partir das 19h30, Martinica Café (303 Norte) – “Por que ler Elício Pontes – Antologia Poética”;
– Quarta-feira (23/8), a partir das 19h30, Martinica Café (303 Norte) – “Hiatos” (poemas), Alexandre Marino;
– Quinta-feira (24/8), a partir das 19h30, Carpe Diem (104 Sul) – “Todos os abismos convidam para um mergulho” (romance), Cinthia Kriemler;
– Sábado (26/8), a partir das 16h, Banca da Conceição (308 Sul) – “João de Barro” (romance), Miguel Sartori;
– Domingo (27/8), a partir das 16h, Cervejaria Criolina (SOF Guará) – “João de Barro” (romance), Miguel Sartori.
Do amor
E ainda que eu tente
não ter medo de ser
estuprada
assassinada
a minha nossa cultura
de todo santo e bendito dia
não deixa.
E mais além
quando me pego forçada a fugir
me sinto obrigada a recuar
porque a minha cara
a minha pele
o meu cabelo
o meu corpo
são alvos mais que certos
da mutilação.
Ainda que eu tente
por apenas mais um segundo respirar,
me falta ar
e sem ar
sem casa
sem escola
sem trabalho
sem comida
sem amor
eu não sou gente não.
Kika Sena, “Periférica” (2017)