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Nas asas de um avião ou nas pontas de uma cruz, não importa como você enxergue a capital do país, o importante mesmo é o tanto de histórias que ela abrigou nestes 63 anos de vida, e com certeza está de braços abertos para muitas mais. Mesmo nova, Brasília também coleciona várias histórias dela. Inclusive, já foi até classificada como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Um verdadeiro berço de música, gastronomia, arquitetura, ciência, arte…
Oh, lugar bom para se morar. Afinal, Brasília não é apenas uma cidade, é um espaço acolhedor há gerações. Gerações vindas de outros cantos desse enorme Brasil e nascidas aqui. O que todas têm em comum? Um sentimento de cuidado com a cidade e da cidade com aqueles que a escolheram para construir a própria história.
Dentro desse contexto, o Metrópoles conversou com sete moradores da capital que contaram um pouco sobre esse sentimento do qual eles também compartilham.
No ano em que o primeiro cine drive-in do Brasil completa 50 anos, a administradora do local, a gaúcha Marta Fagundes, lembra com carinho do lugar que faz parte da vida dela desde a adolescência e já envolve três gerações da família.
O primeiro cinema a céu aberto do país foi inaugurado em 25 de agosto de 1973. No ano seguinte, Jair Fagundes, pai de Marta, foi escolhido para ser gerente do empreendimento. Em 1975, quando ela tinha 15 anos, começou a ajudar o pai no novo trabalho. Ali começou uma história de amor pela tela gigante.
Já em 1978, Marta assumiu a gerência. Dez anos depois, ficou abalada com a notícia de que encerrariam as atividades do cinema e decidiu abrir uma empresa para locar o espaço, a partir de 1989. De lá para cá, atuando como administradora, Marta coleciona muitos anos de luta para preservar o local que faz parte da memória afetiva de tantos brasilienses.
Até que, em 2017, veio o grande presente, tão defendido por urbanistas da cidade: o Cine Drive-in foi reconhecido como Patrimônio Cultural e Material do Distrito Federal. “Hoje, mesmo se eu não estiver à frente por algum motivo, o último cinema desse formato na América Latina não vai ser demolido, porque virou patrimônio da cidade”, celebra.
“Tanto eu quanto a minha família defendemos a preservação do cinema por acreditarmos no potencial. É mágico ver o filme e as estrelas, é algo diferente, uma paixão que as pessoas curtem. Tem gente que só assiste filme se for aqui e isso é muito gratificante para nós”, observa Marta.
Para quem não sabe, o cinema ao ar livre de Brasília virou tema de filme. Marta e o pai são personagens do documentário Cine Drive-in: Cinema sob o céu, de Cláudio Moraes (2014).
No ano seguinte, foi lançado o filme O Último Cine Drive-in, produzido por Iberê Carvalho. Marta recorda que o filme foi exibido em alta definição no próprio telão de 312 metros quadrados de concreto, para uma plateia de 400 carros estacionados e mais de 300 pessoas emocionadas, sentadas no chão. Hoje o filme está disponível no Netflix em 32 idiomas, para mais de 200 países.
Um dos programas favoritos do premiado chef Gil Guimarães é passear pelas feiras do Distrito Federal. As andanças e conversas com feirantes nas feiras de Ceilândia, Núcleo Bandeirante, Vicente Pires e pelo Ceasa contribuem com o processo criativo com inspirações vindas dos quatro cantos do Brasil. Dali saem novas amizades e várias ideias de receitas.
Gil faz questão de aquecer o comércio local e comprar matéria-prima dos pequenos produtores da região. “Temos que valorizar as coisas daqui, nosso serviço artesanal”, reforça.
Segundo ele, a maior parte dos ingredientes utilizados nos restaurantes são produzidos no quadradinho mesmo: mussarela de búfala e burrata do Padef, tomate orgânico de Sobradinho, linguiça de Planaltina, carne de lata do Paranoá, chocolate de Águas Claras, limão do Lago Sul, vinho feito no Lago Norte, cachaça e manjericão do Park Way, cerveja do SIA, entre outros.
Não é à toa que ele é um dos idealizadores do Movimento Panela Candanga, ao lado da chef Mara Alcamin. O objetivo é divulgar e valorizar produtores e produtos encontrados no DF, ainda pouco consumidos pelo público brasiliense. A iniciativa cresceu ao longo dos anos, agregou muitos outros chefs da cidade, diversos produtores e virou uma feira com várias edições, que ajudou a levantar a gastronomia da cidade e hoje conta com a curadoria de Luciana Fabrino Alcamim.
Inclusive, um dos orgulhos de Gil foi ver Brasília ser reconhecida pela revista Prazeres da Mesa em 2022 como uma referência gastronômica no Brasil. A edição 225 traz na capa os dizeres: “Mesa Brasília – Como a capital federal se tornou o terceiro polo da gastronomia do Brasil”.
“Brasília é a cidade que aprendi a amar e escolho para amar. Aqui conheci meus melhores amigos e minha mulher (a funcionária pública Alessandra Lima), foi aqui que meus filhos nasceram (Pedro, 17, e Gabriel, 15) ”, destaca Gil Guimarães, chef e proprietário da Baco Pizzaria, Casa Baco, Parrilla Burguer e Frankies Hot Dog, além de um dos fundadores da Associação Brasileira de Sommeliers.
O chef mineiro com coração brasiliense comemora: “A gente conseguiu botar Brasília no topo, conseguimos ter respeito e valorizar o produto da nossa terra”.
Filha de pai brasiliense e mãe maranhense, Camilla Siren nasceu na Asa Norte e cresceu em Sobradinho, região que despertou a veia artística e a fez entrar para o mundo do grafite, ainda na adolescência. “Eu via murais grandes nas capas dos livros e achava muito louco. Ainda era muito abstrato o que eu via pequeno no papel e faziam tão grande em paredes”, lembra.
Foi então que ela procurou por aulas de muralismo e não encontrou, buscou vídeos na internet, porém não achava muita coisa importante. Resolveu olhar ao redor, conheceu um artista do Guará, que comentou sobre outro de Taguatinga, e assim foi mergulhando nesse novo universo.
“Comecei a perguntar como faziam, como planejavam as pinturas, ia ver o pessoal pintando e fui absorvendo tudo de conhecimento, para avaliar como eu poderia fazer isso”, conta Camilla, que logo decidiu treinar sozinha. Pegava a mochila, o spray e procurava um muro para pintar em Sobradinho em um processo autodidata, necessário para entender como transformar desenhos pequenos em grandes formatos.
Quando começou a pintar, Camilla tinha um certo incômodo, mas não sabia o que causava. Até que percebeu que a figura feminina nos murais do DF era sexualizada. “Eu não me identificava. O corpo feminino era muito objetificado e trazia a ideia de musa inspiradora, já que o meio do grafite ainda é muito masculino. Era uma visão do feminino que não vem de uma mulher”, explica.
A artista então passou a criar figuras femininas nos muros, trazendo uma imagem com a qual se identificava. “Em seguida, recebi vários feedbacks, de como outras mulheres se identificaram e associaram aquele espaço público com elas”, relata Camilla, que observou algo muito natural acontecer: era uma maneira de as mulheres se apropriarem daqueles espaços públicos em que muitas vezes não se sentem confortáveis, por falta de segurança e propensão a assédios.
“Aquela imagem feminina na pintura pode dar uma sensação mínima de acolhimento, mostra que pode fazer parte de mim, que posso estar nesse espaço. É muito importante essa coisa da identificação, de me sentir representada. A arte tem o poder de se comunicar sem palavras”, destaca a artista, que já participou de festivais no Brasil e em outros países, levando essa forma de se comunicar com as mulheres.
Hoje, ela já contabiliza nove anos fazendo muralismo e arte autoral nas ruas de Brasília. “É o local em que mais me sinto bem. Gosto de deixar a minha arte na cidade. Já estou criando um público que acompanha meu trabalho e reconhece quando vê minhas obras na rua. E mesmo para as pessoas que não me conhecem, a arte está ali e faz parte da vida das pessoas. Comecei a sentir mais forte essa conexão”, observa.
A artista enfatiza que ama a capital federal, uma terra fértil onde ela deseja construir muitos projetos e ter o nome conhecido. Um lugar cheio de possibilidades e ferramentas para crescer.
Filho de médicos que participaram do início da história da medicina na Universidade de Brasília (UnB), o brasiliense Rafael Henriques Jácomo chegou a cursar engenharia mecânica, mas logo viu que a área da saúde era o que lhe fazia mais sentido. Seguiu o caminho dos pais e passou em primeiro lugar na mesma faculdade, onde também conheceu a futura esposa.
Brasília é uma verdadeira paixão para Rafael Jácomo, lugar onde coleciona boas recordações. O médico só se mudou da cidade temporariamente, para cursar as residências de clínica médica, hematologia e hemoterapia, além de doutorado, todos na Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto.
O retorno à capital federal já era uma espécie de combinado pré-nupcial, para que aqui retomasse a vida e formasse uma família com a colega médica Andrea Jácomo. Mais tarde, viriam os filhos, também brasilienses, Gabriela, 12, e Miguel, 9.
Quando voltou para Brasília, a vontade de Rafael Jácomo era de continuar retribuindo o cuidado com a cidade. Então a primeira ideia era logo ser professor na UnB. Mas surgiu a oportunidade de se tornar assessor médico do Sabin, na área de hematologia, em 2008. Foi um convite que fez sentido, já que se trata de uma empresa brasiliense. “O Sabin representa Brasília e aqui me sinto representado pela minha história com a cidade”, destaca.
Hoje, diretor técnico do Sabin, ele lidera a equipe de pesquisa, a qual não imaginava o tamanho do protagonismo diante da maior crise sanitária dos últimos tempos.
Ao perceber o agravamento dos primeiros casos da Covid-19 na China em dezembro de 2019, Jácomo desafiou o coordenador de pesquisas do Sabin, Gustavo Barra, e a equipe do grupo a adiantarem-se e desenvolverem testes para diagnóstico da doença.
O trabalho pioneiro envolveu muita pesquisa e compra de insumos específicos. Em março de 2020, quando o vírus chegou ao Brasil, a instituição já tinha o teste pronto e conseguiu diagnosticar o primeiro caso em Brasília.
Enquanto grandes laboratórios de São Paulo sofriam com o diagnóstico e apenas disponibilizavam testes para hospitais, o Sabin conseguiu ampliar o acesso a testes para a população, além de inúmeros hospitais do Distrito Federal.
Uma outra contribuição importante liderada por Jácomo para Brasília foi o desenvolvimento de um tipo de exame que diferencia o diagnóstico para dengue, zika e chikungunya, doenças com sintomas parecidos, gerando uma aproximação dos médicos e ampliando as possibilidades de tratamento para cada doença.
Outra novidade sob os cuidados de Jácomo foi a implementação de um setor específico para testes genômicos, metodologia de testes moleculares que avaliam material genético e são capazes de detectar precocemente, até em crianças, possíveis doenças genéticas, além de identificar pela análise dos genes, padrões familiares, possibilitando uma orientação de risco na sucessão familiar. É o único setor de genômica implantado na região.
Se Brasília é hoje reconhecida como destaque no Brasil e no mundo pelo choro, gênero musical centenário estrelado por Pixinguinha, muito desse reconhecimento se deve ao esforço de Reco do Bandolim. “Para você fazer cultura no Brasil, tem que ser teimoso”, revela o músico.
Henrique Lima Santos Filho, conhecido como Reco do Bandolim, chegou por aqui quando a cidade ainda era um grande canteiro de obras, em 1963, aos 8 anos de idade, acompanhando o trabalho do pai, deputado federal. Em Brasília, conheceu a esposa, Maria Aparecida Castro Lima Santos, e teve três filhos: Marília, Heloísa e Henrique Neto, “músico da pesada 7 cordas” e parceiro no grupo Choro Livre.
Antes de se apaixonar pelo bandolim, Reco foi guitarrista de algumas bandas brasilienses. A paixão pelo choro começou quando conheceu os discos do Jacob do Bandolim.
Em 1972, época em que “a juventude era enfeitiçada pela guitarra”, Reco foi a um show de Moraes Moreira e Armandinho, que o surpreenderam ao tocar choro. “Quando ouvi aquela música tocada por Armandinho, minha vida mudou completamente. Fiquei na cabeça que iria abrir uma escola de choro”, lembra. “Quando descobri o bandolim, aposentei a guitarra.”
Jornalista de formação, atualmente Reco se considera um bandolinista e produtor cultural, que este ano completa 30 anos à frente do Clube do Choro. Foi em 1997, depois de quatro anos de luta junto ao Ministério da Cultura e com apoio da Câmara Legislativa, que ele conseguiu fundar a Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello, a primeira a ensinar o gênero no Brasil. Foi quando passou a ocorrer a profissionalização e os artistas puderam começar a viver de música.
Entre tantas conquistas, Reco do Bandolim lembra com carinho do telefonema de Oscar Niemeyer em 2004, pedindo uma reunião no Rio de Janeiro para conversar sobre o projeto do Complexo Cultural do Choro, abrangendo escola e clube. Deu certo, o projeto foi acompanhado pelo arquiteto Fernando Andrade e o espaço de 2 mil metros quadrados foi inaugurado em 2011. “Digo sempre que a realidade ficou maior do que o sonho”, comenta Reco.
“Sou muito grato a Brasília pela generosidade de ser uma cidade tão moderna, com arquitetura extraordinária e por ser essa cidade do futuro que acolheu tão bem esse gênero centenário. Figuras importantíssimas do choro moraram aqui. Brasília é a capital do choro e se tornou um polo exportador de cultura”, complementa Reco do Bandolim.
A paixão por Brasília foi o que uniu os fundadores do escritório Bloco Arquitetos. Colegas de faculdade, na Universidade de Brasília (UnB), o baiano Daniel Mangabeira, o brasiliense Henrique Coutinho e o niteroiense Matheus Seco admiram a originalidade da capital federal e buscam capturar nos trabalhos um pouco do legado dos profissionais que projetaram as primeiras construções na cidade.
A escolha do endereço para o escritório do trio não foi coincidência. Projetado pelo renomado arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé), o Edifício Morro Vermelho, no Setor Comercial da Asa Sul, tem como marca as janelas quadradas com pontas arredondadas. “Estamos em um prédio de 1974, com soluções arquitetônicas super atuais, sem ar-condicionado, com iluminação natural, o que nos influencia diretamente todo dia para uma arquitetura eficiente, que tem a ver com a cidade”, explica Coutinho.
Um dos locais prediletos de Matheus Seco na cidade é o Minhocão, na UnB: “Foi lá que mergulhei de cabeça na arquitetura. Lá tive a primeira experiência de prédio pré-fabricado, muito flexível, que até hoje é adaptável e continua digno, abrigando todo tipo de intervenção. É muito legal ver isso, uma grande lição de Niemeyer, com dedo do Lelé”.
Mangabeira afirma que ele e os sócios assumiram um compromisso com a cidade, para que seja compreendida por quem é ou não daqui, além de divulgarem projetos que são referência na capital federal. “Brasília é uma cidade espetacular, patrimônio mundial, de importância não só brasileira, mas planetária. A gente não está criando apenas um discurso, mas tentando mostrar que Brasília ainda serve como boa referência para muitos profissionais.”
Este ano, o site nova-iorquino Architizer elegeu o Bloco Arquitetos como o terceiro no ranking dos 25 melhores escritórios brasileiros de arquitetura da atualidade.
Foi andando de skate pelas ruas do Guará por volta dos 11 anos de idade que o brasiliense Daniel Morais dos Santos Bezerra despertou para uma oportunidade que mais tarde viria a transformar a vida dele e da família. Hoje conhecido como Toys Daniel, o garoto influenciado pela veia artística da família potiguar já soma 20 anos pintando com a técnica do grafite.
O sonho que começou na infância virou realidade. Toys já tem o nome estampado com muitas cores em mais de mil obras pelas ruas do Distrito Federal. O artista conta que não se recorda de uma época da vida em que não estivesse desenhando. Praticamente todas as lembranças de infância envolvem rabiscar alguma coisa.
“Desde criança, eu me comunicava com a cidade. Depois de conhecer o grafite, nunca mais parei de pintar”, revela ele, que chegou a jogar basquete profissionalmente, ganhou bolsa de estudos e cursou Publicidade e Propaganda como formação superior.
“Fui conhecendo melhor a cidade, pintando pelo Plano Piloto e regiões administrativas. Pelo contato com mendigos, policiais, empresários, você conhece as verdadeiras pessoas que fazem Brasília. Acabei ganhando a chave da cidade”, destaca o artista.
Por meio da arte urbana, Toys Daniel já levou um pouco da cultura brasiliense para 11 países. E mesmo com essa abertura a novas possibilidades, ele afirma que deseja continuar vivendo na capital federal: “Quero manter a minha base aqui e usar como uma matéria criativa as ruas, o céu de Brasília, a paleta de cores no pôr do sol, as árvores tortas do cerrado, a geometria da cidade.”
Em comemoração ao aniversário de 63 anos da capital federal, Toys se uniu ao fotógrafo Celso Júnior na exposição Brasília em sonho, à mostra no Espaço Cultural Athos Bulcão, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, até 14 de maio de 2023. São obras inéditas que misturam fotografia e pintura com foco em Brasília.