Exclusivo: cúpula da PF usou argumento falso no caso Milton Ribeiro
Corporação alegou restrições orçamentárias para não transferir ex-ministro, mas seus aviões têm voado até para levar diretor a eventos
atualizado
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A cúpula da Polícia Federal usou um argumento bastante questionável para evitar que o ex-ministro Milton Ribeiro fosse transferido de São Paulo para Brasília logo após ser preso em razão das investigações sobre a existência de um esquema de corrupção no Ministério da Educação.
Além de mencionar risco à segurança e “exposição desnecessária” dos presos no despacho que foi determinante para que o ex-ministro permanecesse em São Paulo, como gostaria, a direção da PF alegou “restrições orçamentárias” para dizer que não seria possível fazer a transferência.
Só que um levantamento feito pela coluna nos registros de voo dos aviões pertencentes à corporação mostra que, para outros motivos, não há restrição orçamentária.
Semanas antes da prisão de Milton Ribeiro, um dos jatos foi usado até mesmo para levar o diretor-geral da PF, Márcio Nunes de Oliveira, a cidades do Norte e do Nordeste para participar de cerimônias de inauguração e de posse de delegados nomeados por ele para cargos de chefia.
A Polícia Federal já tem três jatos e um quarto, recém-adquirido, está prestes a entrar em operação. Entre maio e junho, nas semanas que antecederam a prisão de Milton Ribeiro, duas dessas aeronaves fizeram nada menos que 40 voos.
É um dado que, além de derrubar o argumento de que não havia recursos para realizar a transferência do ex-ministro para Brasília, dá força à queixa do delegado encarregado da investigação, Bruno Calandrini, que denunciou ter havido interferência da cúpula da PF no caso.
Um dos pontos apontados por Calandrini, que em um grupo de WhatsApp afirmou a colegas não ter autonomia para conduzir a apuração com independência, foi justamente a decisão de seus superiores de não autorizar a transferência de Ribeiro.
A decisão da cúpula da PF foi determinante para que o ex-ministro não fosse recambiado para Brasília, onde ele deveria ser ouvido em uma audiência de custódia.
Milton Ribeiro tentou evitar a transferência a todo custo. A defesa dele já havia solicitado, formalmente, que a ordem de transferência expedida pelo juiz Renato Borelli, o mesmo que determinou a prisão, fosse revertida. O pedido dos advogados foi negado. Mas um ofício enviado à Justiça pela direção da própria PF, afirmando que não seria possível transferi-lo, garantiu que a vontade do ex-ministro prevalecesse.
No ofício, assinado por Caio Rodrigo Pellim, um dos diretores da corporação, a Polícia Federal alegava restrições orçamentárias e razões de segurança. “Nos últimos meses a Polícia Federal vem enfrentando um contingenciamento financeiro que acaba por interferir diretamente em suas atribuições constitucionais e legais (…), situação essa que, por si só, já dificultaria a transferência imediata dos presos na operação de hoje”, escreveu Pellim, no mesmo dia da prisão.
Os policiais encarregados da investigação, coordenados pelo delegado Calandrini, chegaram a propor até mesmo que a transferência de Milton Ribeiro e dos demais presos para Brasília fosse feita em voos de carreira. Mas a cúpula da PF entendeu que o custo da medida seria alto demais, e que a transferência poderia representar “exposição desnecessária” e risco à integridade dos presos, “por se tratarem de pessoas públicas (e com notoriedade) e considerando a repercussão nacional da operação”.
Se a PF quisesse, poderia tranquilamente ter transferido Ribeiro para Brasília a bordo de algum de seus jatos – algo que costuma ser comum em operações do tipo. Um dos aviões, por sinal, de prefixo PR-PFN, fez um voo de Curitiba para Brasília no mesmo dia da prisão de Milton Ribeiro. A aeronave decolou da capital paranaense pouco depois do meio-dia, quando o ex-ministro já estava detido em São Paulo – bastaria fazer uma escala na capital paulista, embarcá-lo e levá-lo até Brasília, como queriam o juiz e os investigadores do caso.
Na contramão do discurso de que faltam recursos financeiros, há ainda os voos feitos exclusivamente para transportar integrantes da cúpula da corporação. No dia 12 de maio, outra das aeronaves operadas pela PF decolou de Brasília para Belém, onde o diretor-geral participou da solenidade de inauguração da nova sede da corporação no Pará.
No dia seguinte, o mesmo jato Embraer, de prefixo PR-DPF, voou de Belém para Palmas, para mais uma agenda de Márcio Nunes: desta vez, a posse do novo chefe da PF no Tocantins. Semanas antes, nos dias 5 e 6, a aeronave levou o diretor a Fortaleza e a Teresina, para empossar os novos superintendentes do Ceará e do Piauí.
Indagada sobre as razões pelas quais argumentou que enfrenta restrições orçamentárias para não transferir Ribeiro enquanto seus jatos seguem voando, inclusive para agendas de seu diretor, a PF não respondeu até a publicação desta reportagem.
O caso Milton Ribeiro trouxe de volta as suspeitas de interferência política no comando da PF, uma questão que veio à tona a partir da famosa reunião ministerial de abril de 2020 na qual o presidente Jair Bolsonaro afirmou que era preciso trocar o comando da instituição para evitar que familiares e amigos deles fossem alvejados.
“Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f. minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança da ponta de linha que pertence à estrutura. Vai trocar. Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira”, disse o presidente na ocasião.
Logo depois, o então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, foi demitido. A crise resultou na saída do ex-juiz Sergio Moro do Ministério da Justiça. Moro deixou o cargo acusando o presidente de tentar interferir no trabalho da PF. Desde então, três diretores já passaram pelo comando da corporação. Nunes, o atual, é homem de confiança do ministro da Justiça, o também delegado federal Anderson Torres, um dos mais fiéis escudeiros de Bolsonaro na Esplanada dos Ministérios.
A Polícia Federal toca, atualmente, várias investigações que envolvem integrantes da família Bolsonaro – entre eles o próprio presidente e os seus filhos – e aliados do governo.
Na semana passada, como antecipou a coluna, o Ministério Público Federal pediu e o juiz do caso Milton Ribeiro remeteu os autos de volta ao Supremo Tribunal Federal para apurar a suspeita de que o presidente da República agiu para blindar o ex-ministro durante as investigações. Telefonemas interceptados pelos policiais que apuram o escândalo do MEC indicam que Jair Bolsonaro pode ter alertado Ribeiro de que ele seria alvo de uma ação de busca e apreensão.