Cenas da Copa: tem um Brasil que ganhou no Catar
Muitos brasileiros faturaram. Alguns, subvertendo as leis locais – como prostitutas de luxo e cambistas que se transferiram do Rio para Doha
atualizado
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DOHA – Amanda não foi ao Catar, mas mandou representantes. Meia dúzia. Elas foram selecionadas entre as suas principais parceiras de trabalho. Discrição era um dos requisitos primordiais em razão das rígidas normas do país-sede da Copa do Mundo, onde muita coisa é proibida. Amanda é cafetina no Rio de Janeiro. Trabalha com o mercado de alto luxo. Ela sabia que haveria demanda em Doha nas semanas da competição e se organizou para faturar alto.
Tudo foi planejado com antecedência. As garotas de programa escaladas para a missão viajaram, por óbvio, como torcedoras comuns. Durante todo o tempo, se empenharam para não dar sinais de que vieram trabalhar. Na capital do Catar, as fotos delas circulavam em grupos restritos, distribuídas por conhecidos de Amanda que estavam na cidade, também a serviço, e foram devidamente orientados a repassá-las sem alarde, apenas para clientes “confiáveis”.
Amanda e suas garotas estão entre os brasileiros que, fora de campo, ganharam com a Copa. Uns de maneira lícita, sem burlar regras, com polpudos contratos relacionados à organização da maior competição do futebol mundial, outros infringindo sem medo os códigos que regem a sociedade catari. Em Doha havia até cambistas profissionais que negociavam ingressos no mercado paralelo a preços algumas vezes superiores aos originais da Fifa, e com possibilidade de pagamento em reais, via Pix – sim, via Pix. Não importa o lugar, é o jeitinho que sempre arruma brechas.
Carros e grama
À luz do dia, legalmente, há diversos casos de brasileiros que lucraram. Como os sócios da empresa Greenleaf, do Rio, contratada para cuidar dos gramados de cinco dos oito estádios do torneio, cada um ao custo de US$ 2 milhões de dólares – mais de R$ 10 milhões. Bem antes de a Copa começar, funcionários foram enviados a Doha para dar início à missão, programada para terminar apenas depois da grande final.
Outro exemplo é a Pretorian Logística e Transportes, aberta no Catar, mas com donos brasileiros. Nas últimas semanas, a empresa forneceu carros com motoristas para convidados e delegações oficiais. Foram centenas de veículos. A empresa pertence a um professor de artes marciais do Rio que vive em Doha e a um empresário, também carioca, do ramo de turismo. Para dar conta do serviço, os dois se associaram a um milionário catari, cuja família é dona de uma rede de concessionárias de marcas de luxo, como Mercedes, que providenciou vários dos carros.
Pelo menos duas dezenas de pessoas foram trazidas do Brasil para ajudar na tarefa. Desde o início da Copa, elas dividem quartos em uma casa alugada nas proximidades da região central da capital. Como um dos donos da empresa é mestre em jiu-jitsu (especialidade de muitos dos brasileiros que hoje ganham a vida no Catar ensinando os locais a lutar), vários dos contratados foram arregimentados entre amigos lutadores. São fortões, homens e mulheres, que por estes dias fazem bico dirigindo carros executivos e vans entre hotéis, estádios e festas. Os demais motoristas são imigrantes indianos, paquistaneses e bengalis selecionados no Catar.
A Doha proibida
De volta ao lado oculto da Copa, a primeira em um país árabe, as histórias misturam aventura e certa dose de ousadia. No Catar, quase tudo que costuma ser fonte de prazer para os ocidentais é proibido, ao menos em público, e pode dar cadeia. Não significa, porém, que não aconteça. Parênteses aqui para dar uma ideia do que se passa por detrás do véu da sharia, o rígido código islâmico que guia as leis do país.
Longe dos olhos das autoridades, por exemplo, há um mercado escondido de bebidas alcóolicas. Como funciona? Estrangeiros em situação legal no país, com contrato de trabalho assinado, recebem uma autorização especial que lhes permite comprar cerveja, vodka, whisky e outros itens que para os cataris são terminantemente proibidos. A cota mensal varia de acordo com o salário. Quem tem a permissão pode fazer suas compras, com hora marcada, em uns poucos depósitos da QDC, a Qatar Distribution Company. Por fora, são galpões que mais parecem penitenciárias, cercados por muros altos e arame farpado. Para entrar, é preciso passar por um rigoroso controle de segurança. Por dentro, são como os mercados atacadistas no Brasil. Além de bebidas, ali também é possível comprar carne de pouco, cujo consumo é igualmente vedado aos locais por causa da religião.
Tudo o que sai é registrado. O controle fica com as autoridades, e o código de barras de cada item fica vinculado ao cartão de autorização e ao documento de identificação de quem comprou. Se uma garrafa de vodka é desviada, vai parar nas mãos de quem não pode consumi-la e a polícia descobre, por exemplo, é cadeia na certa – para o estrangeiro que comprou usando sua autorização e para o portador flagrado com a bebida. O mesmo vale para qualquer produto de origem suína, nem que seja um simples pacote de bacon em tiras. Mesmo assim, alguns detentores das permissões especiais de compra se aproveitam do privilégio para fazer dinheiro e revendem, às escondidas, os produtos que compram.
É uma faceta do lado oculto do Catar, o mesmo cujos limites alguns brasileiros, como as garotas de Amanda, testaram sem medo nesta Copa. O tráfico ilegal de bebidas e carne de porco é operado, especialmente, por indianos. Os clientes são, quase sempre, estrangeiros que não possuem a permissão. No galpão, comprando dentro da lei, uma garrafa de vodka das marcas mais conhecidas no mundo sai por cerca de 400 rials, a moeda catari. Convertendo, dá R$ 580. No mercado paralelo, o valor mais do que dobra. A caixa de cerveja com 24 latinhas custa o equivalente a R$ 900.
Cambistas que aceitam Pix
Os operadores desse mercado sabem do risco que correm, como sabiam os brasileiros que vieram com o plano de subverter as regras locais e fazer, por dinheiro, o que é patentemente proibido no país do emir Tamim bin Hamad Al Thani.
É o caso de Leonardo – pelo menos era assim que ele se identificava –, um cambista do Rio de Janeiro que nas últimas semanas trabalhou freneticamente vendendo ingressos para os jogos. Sua clientela era formada na maioria por outros brasileiros que não haviam conseguido comprar as entradas pela plataforma oficial da Fifa. O preço, claro, era algumas vezes superior ao valor de face, especialmente para as partidas mais procuradas. Dias atrás, por exemplo, o cambista estava vendendo um ingresso categoria 3 para a final por US$ 3.800, mais de R$ 20 mil (na Fifa, enquanto esteve disponível, o mesmo tíquete foi vendido por R$ 2,8 mil).
Para os clientes brasileiros havia uma facilidade: o pagamento podia ser feito em reais, por Pix. Bastava mandar o comprovante e o ingresso era entregue. Como foi no Brasil na Copa de 2014, no Catar o comércio paralelo de ingressos com ágio é proibido. Pode dar prisão. Nada, porém, que preocupasse o cambista escolado no Maracanã. Assim como Leonardo, havia outros negociantes de ingressos em atividade em Doha. Os contatos eram compartilhados entre torcedores e as negociações se davam, muitas vezes, por mensagens de WhatsApp.
Os “books” (quase) secretos
Era também nos aplicativos de mensagem que circulavam, mas com muito mais cuidado, fotos das garotas de programa enviadas ao Catar por Amanda, a cafetina do início desta reportagem. Duas horas com uma delas custavam US$ 1 mil. Mais de R$ 5 mil. O atendimento era feito no endereço do cliente. Para a Copa, uma ocasião especial, o preço foi especialíssimo, bem acima do que elas costumam cobrar. No Rio, disse uma pessoa próxima mediante o compromisso de que sua identidade seria preservada, as mesmas garotas cobram R$ 3 mil por um programa de três horas. No Catar, portanto, o preço da hora foi multiplicado por dois e meio.
O mais curioso é que não era qualquer um cliente que topava pagar que conseguia ser atendido. Antes, havia uma espécie de triagem, para evitar riscos. Alguns contatos de Amanda no Catar – gente habilitada, inclusive, para circular por locais restritos da Copa – faziam esse trabalho. Antes de as garotas chegarem, a cafetina os orientou a enviar fotos e oferecer o serviço apenas a pessoas em quem eles confiassem, que não deixassem as mulheres expostas ao perigo de serem descobertas.
Prostituição no Catar, como se pode imaginar, é crime pesado. Se flagrada, a prisão é certa. Por isso, os “books” das brasileiras rodaram apenas em círculos bem restritos. Um estrangeiro, próximo a um dos contatos de Amanda, se interessou e quis contratar uma das garotas. Rico, pagaria tranquilamente os US$ 1 mil. Estava quase tudo certo. No final, ele tomou bolo. A explicação: no período, a garota estava muito ocupada. O intermediário deu a entender que, naqueles dias, a agenda estava complicada porque ela estava atendendo celebridades do esporte brasileiro de passagem por Doha. Ficou nisso. O cliente, que não era tão VIP assim, desistiu.
A velha malandragem
Afora os delitos mais graves, se em campo faltou esperteza para evitar um gol de empate a quatro minutos do fim da prorrogação, do lado de fora a velha malandragem verde-amarela desfilou lépida por Doha. Mais parênteses para um episódio curioso. Em um jogo já das fases eliminatórias, um brasileiro que está na cidade para trabalhar na Copa foi escalado para ciceronear um grupo de milionários russos. Os levou ao estádio e, já perto da entrada, pouco antes de eles seguirem sozinhos para uma área reservada a convidados especiais, recebeu um envelope com dois ingressos e ouviu um pedido: deveria ficar por ali e entregar os tíquetes, especialíssimos, a amigos dos russos que estavam atrasados, mas supostamente a caminho e logo chegariam. Passou o primeiro tempo e nada de os tais amigos aparecerem. Intervalo de jogo. Nada.
Faltavam 15 minutos para o final da partida e o brasileiro, torcedor do Flamengo, chegou à conclusão de que a dupla a quem deveria entregar o envelope havia desistido. E o que ele fez? Resolveu usar um dos ingressos. Com o jogo já acabando, daria ao menos para conhecer o estádio por dentro. Mas não era só esse o interesse: como o tíquete era para uma área onde normalmente havia bons presentes para convidados, ele queria descolar um brinde interessante. Com medo de chegar no local de destino impresso no ingresso e dar de cara com os russos que havia levado ao estádio – e que certamente concluiriam que ele estava ali porque usou um dos tíquetes –, o brasileiro levou a ideia a cabo, mas com cuidado, se vigiando.
Deu certo. Além de conhecer a parte interna da arena, ele ganhou uma réplica em tamanho médio do troféu da Copa do Mundo. Saiu feliz da vida, mas consciente de que havia feito algo errado. O rubro-negro, do seu jeito, também ganhou.
A Seleção outrora favorita caiu no caminho, mas o Brasil deixou sua marca no Catar.