Sonhos negados: o espelho quebrado da representatividade na TV
Das Paquitas aos dias de hoje, como meninas negras enfrentam um padrão de beleza excludente, que se reflete na TV
atualizado
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Dos anos 1980 até o início dos anos 2000, um desejo maciço pulsava no coração de milhares de meninas negras: ser uma Paquita. Era o sonho de fazer parte de um grupo que personificava a alegria e o sucesso na televisão brasileira, mas que, aos olhos dessas meninas, parecia sempre distante, inalcançável. E era! Mesmo diante de concursos com milhares de vagas, a realidade era cruel — uma vaga para 1.200 candidatas, as cartas escritas pelas mãos ansiosas e esperançosas de jovens negras invariavelmente caíam no esquecimento. Filas imensas de candidatas a serem excluídas. A imagem de uma Paquita era: branca, loira, de olhos claros, e as meninas que ousavam sonhar fora desse padrão logo se viam confrontadas com a frustração de não serem reconhecidas como parte desse imaginário. As portas estavam fechadas antes mesmo de serem abertas, e ao mesmo tempo, milhões de discos, bonés e roupas da Xuxa eram comprados por crianças negras que não se viam refletidas naquelas figuras de sucesso, gerando um impacto profundo na autoestima que reverberou até a vida adulta.
É triste perceber que, em um país onde 56% da população é negra, o reflexo na televisão ainda é esmaecido e torto, uma simetria sem fôlego que não traduz a verdadeira diversidade da nação. A televisão, que deveria espelhar as vozes, rostos e histórias do Brasil, ainda insiste em cultivar um padrão eurocêntrico que não faz jus à riqueza plural de sua população. Se nos anos 1980 meninas negras eram silenciadas na tentativa de se encaixar em um ideal imposto, hoje ainda vemos essa exclusão, embora com novas nuances. A promessa de diversidade ainda não se materializou em plena potência, e o que se vê na mídia é um retrato tímido, longe do vibrante mosaico que é o Brasil real. E essas crianças que cresceram sem se ver refletidas nos programas infantis que consumiam, carregaram consigo os danos na autoestima, lutando para encontrar um lugar em um mundo que as ignorava.
Agora, imagine viver em um país onde o padrão de beleza parece ser tudo o que você não é. Imagine crescer acreditando que o correto, o desejável, o belo é ser branca, ter olhos azuis e ser loira. Imagine carregar essa angústia em um Brasil que, ironicamente, é um dos países mais miscigenados e mais negro do mundo. As meninas negras, como as que sonhavam ser Paquitas, enfrentam diariamente a luta contra a invisibilidade, tentando se reconhecer e se afirmar em uma sociedade que ainda insiste em colocá-las à margem. A busca por aceitação e representatividade continua sendo um caminho árduo, mas também carregado de resistência e resiliência, onde o sonho de se ver refletida, com toda a sua beleza negra, persiste. E, embora tardiamente, a luta por um reconhecimento pleno e pela afirmação da autoestima negra que sempre buscou romper com esses paradigmas excludentes.
Precisamos entender que a lógica “Paquita” foi perversa. E se perpetua até hoje.
O padrão de beleza é socialmente construído
Em nossa sociedade, a percepção do que é atraente ou desejável tem sido moldada por padrões de beleza profundamente enraizados em questões raciais e históricas. No Brasil, o predomínio do eurocentrismo como modelo de beleza ideal, especialmente a valorização de características como pele clara, olhos azuis e cabelos loiros, não é um acaso. Ele é fruto de um processo histórico que remonta ao período colonial, atravessa a eugenia e continua a influenciar as relações sociais e afetivas.
Durante o século 19 e início do 20, o Brasil, assim como outras nações latino-americanas, adotou ideais eugenistas, que defendiam a suposta superioridade da raça branca e, mais especificamente, das características físicas europeias. Sob essa lógica, acreditava-se que o branqueamento da população era um caminho para o progresso. O ideal eugenista no Brasil sugeria que o país deveria incentivar a imigração europeia e, eventualmente, “diluir” a população negra e indígena. Essa visão sustentava políticas públicas, como incentivos à imigração europeia e exclusão de africanos e asiáticos.
O conceito de eugenia não só afetou a forma como a nação se pensava, mas também moldou os padrões estéticos e sociais. As relações interpessoais, incluindo as afetivas, passaram a ser impactadas por essas noções de “pureza racial”. Assim, surgiram discursos que, de maneira velada ou explícita, reforçavam a ideia de que ter parceiras ou parceiros com características físicas europeias, especialmente loiras e de pele clara, era uma forma de ascender socialmente.
A mídia, por sua vez, desempenha um papel crucial na consolidação desse imaginário. Na televisão, na publicidade e nos grandes eventos da cultura pop, as figuras representadas como mais atraentes, bem-sucedidas ou desejáveis quase sempre possuem traços associados à branquitude. Assim, loiras, com olhos claros, se tornam a personificação do ideal de beleza, enquanto características fenotípicas negras são vistas como exóticas ou menos desejáveis. Esse fenômeno é claro nas telenovelas brasileiras, nas quais o protagonismo é muitas vezes dado a personagens que representam o ideal eurocêntrico, enquanto as pessoas negras ocupam papéis subalternos ou estereotipados.
A criação e imposição desses padrões de beleza têm consequências reais, não só no campo afetivo, mas na autoestima e na construção da identidade de indivíduos negros. Quando uma pessoa negra cresce em um ambiente onde o que é considerado bonito não reflete sua própria imagem, há uma nítida desconexão entre sua aparência e aquilo que é socialmente validado. Isso pode resultar em baixa autoestima e até em um desejo de se aproximar do padrão imposto, seja por meio de procedimentos estéticos ou na busca por relações com pessoas que se encaixem nesse padrão.
É importante lembrar que, embora o Brasil seja um país de maioria negra, o ideal de beleza eurocêntrico prevalece. Esse paradoxo só reforça o quão enraizado o racismo está nas estruturas de poder e na criação do imaginário social. A desconstrução desses padrões é um processo lento e que exige não apenas uma mudança de comportamento individual, mas uma transformação mais ampla na maneira como valorizamos a diversidade racial e estética.
Em tempos de maior conscientização sobre questões raciais, a luta por representatividade e pela validação da beleza negra é urgente. Movimentos como o empoderamento estético e a aceitação do cabelo crespo são apenas algumas das respostas contemporâneas a séculos de opressão. No entanto, o desafio é maior: precisamos questionar e desconstruir as lógicas de poder que sustentam a branquitude como sinônimo de beleza e sucesso, promovendo uma nova narrativa em que todos os tipos de corpos e aparências sejam igualmente valorizados.
Dessa forma, mais do que uma questão pessoal, a preferência por loiras ou por pessoas de pele clara em detrimento das negras é um retrato de como o racismo molda até os campos mais íntimos de nossas vidas. O desafio de construir uma nova percepção de beleza, uma que celebre a diversidade e que resista aos padrões coloniais, é fundamental para qualquer sociedade que se pretenda verdadeiramente inclusiva e justa.
A responsabilidade não era só da Marlene. Todos ali, com poder ou não, naturalizavam a excludência. E a Bombom? Sem falsa simetria, por favor.