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O impacto das apostas on-line: R$ 3 bilhões do Bolsa Família

Os mais vulneráveis em risco: mulheres negras e jovens de periferia, as principais vítimas do ciclo destrutivo das apostas

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Dona Maria, mulher de mãos calejadas e sonhos grandes, acompanha a vida delirante da blogueira do Leblon pelas telas do celular. A mulher, que diz ter saído da pobreza, exibe seus carros de luxo, roupas de grife e viagens para destinos que Dona Maria só conhece de ouvir falar. Aos olhos da pobre senhora, aquilo parece o caminho para a liberdade: um sapato de marca, que ela sequer sabe pronunciar o nome, poderia ser o seu passaporte para uma vida melhor, mais digna, sem tantas contas atrasadas para pagar.

A blogueira, sempre sorridente, mostra como é simples conquistar tudo aquilo: basta jogar. Com a esperança acesa e o peso das dívidas sobre os ombros, Dona Maria faz a primeira aposta, querendo transformar aquele dinheiro suado, reservado para a conta de luz e o gás, em uma saída para sua miséria. Mas ela perde. E, com o coração apertado e a promessa de ganhar na próxima, ela aposta de novo. Perde mais uma vez. E assim, no desespero de tentar recuperar o que já se foi, Dona Maria afunda cada vez mais, presa em um ciclo sem fim, onde o sonho da riqueza se transforma em um pesadelo de dívidas e frustrações.

Mas mal Dona Maria sabe que é tudo uma farsa. A blogueira, com seu sorriso ensaiado e sua vida de luxo, não passa de um personagem em um teatro de mau gosto. Os vídeos que a mostram ganhando repetidas vezes são cuidadosamente editados, um espetáculo armado para enganar os olhos dos mais desavisados. O jogo, vendido como uma chance de sorte, é na verdade o azar disfarçado. Dona Maria nunca vai ganhar, porque o jogo nunca foi feito para ela vencer.

O que ela não percebe é que, ao fazer suas apostas, está jogando com a própria vida. O jogo é uma arma, fria e calculista, apontada direto para a cabeça do pobre. E a cada aposta perdida, o gatilho se aperta mais um pouco. O destino é sempre o mesmo: perder tudo, e ao final, só restar o silêncio do vazio, onde antes existia a esperança de uma vida melhor.

Os bets e a desgraça

Nos últimos anos, o Brasil assistiu a uma explosão do mercado de apostas on-line, popularmente conhecido como “bets”, que se infiltrou em todos os setores da sociedade. No entanto, o impacto desse fenômeno é ainda mais alarmante quando analisamos o comportamento dos beneficiários do programa Bolsa Família. De acordo com dados do Banco Central, só no mês de agosto de 2024, foram transferidos R$ 3 bilhões via PIX de beneficiários do Bolsa Família para empresas de apostas. Isso levanta preocupações significativas sobre a saúde econômica e social das famílias brasileiras, particularmente as mais vulneráveis.

O cenário atual mostra um paradoxo: enquanto o governo Lula criou mais de 3 milhões de empregos com carteira assinada nos primeiros meses de 2024, o consumo das famílias, especialmente daquelas de baixa renda, não reflete essa recuperação econômica. Parte da explicação para essa contradição pode ser encontrada no desvio de recursos destinados ao sustento básico das famílias para o mercado de apostas. A movimentação de bilhões de reais de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família para o setor de apostas evidencia o impacto profundo desse vício no cotidiano dessas pessoas.

O Perfil dos Aposta-Dores

Para entender o impacto das apostas on-line, é importante observar o perfil de quem está apostando. De acordo com pesquisas recentes, os beneficiários do Bolsa Família que mais participam desse mercado de apostas pertencem majoritariamente a grupos raciais e de gênero historicamente marginalizados. Mulheres negras, mães solo e jovens negros formam uma parcela considerável dos usuários do Bolsa Família. Essas pessoas, que recebem em média R$ 600 por mês do governo, são frequentemente atraídas pela promessa de enriquecimento rápido que as plataformas de apostas vendem. Entretanto, essa ilusão de prosperidade muitas vezes resulta em perdas devastadoras.

Além da raça e gênero, o fator renda é outro determinante crucial. Beneficiários do Bolsa Família são, por definição, pessoas de baixa renda que dependem de auxílios do governo para sobreviver. No entanto, a tentação de multiplicar rapidamente os valores recebidos pelo programa, especialmente em um cenário econômico incerto, tem levado muitos a mergulharem no mundo das apostas sem medir as consequências.

A extensão do problema vai além das cifras econômicas. O vício em apostas on-line tem impactos severos sobre a saúde mental e a estabilidade familiar. Estudos mostram que o jogo patológico, causado por “bets” e similares, está diretamente relacionado ao aumento de crises de ansiedade, depressão e, em casos mais graves, suicídio. Essas patologias são especialmente prevalentes entre pessoas que já enfrentam altos níveis de vulnerabilidade social e econômica, como os beneficiários do Bolsa Família.

Muitas famílias que dependem do programa Bolsa Família para comprar alimentos, pagar contas básicas e sobreviver estão agora enfrentando o colapso financeiro, à medida que recursos essenciais são desviados para plataformas de apostas. A crise de saúde mental também se intensifica com o aumento do endividamento, já que muitos apostadores tentam compensar as perdas anteriores com novos depósitos, num ciclo vicioso de dívidas e desesperança.

O impacto destrutivo das apostas on-line vai além das finanças pessoais. As apostas têm causado uma verdadeira desestruturação de lares. Casos de violência doméstica, separações e abandono familiar têm aumentado em famílias onde o vício em apostas se instalou. Os relatos de desespero são numerosos, com mães que perdem todo o benefício em apostas e ficam sem dinheiro para alimentar os filhos, esposos que escondem dívidas gigantescas de suas parceiras e parceiros, e jovens que entram em estado de depressão após perderem tudo.

A questão mais preocupante é: quem está perdendo com o crescimento desenfreado do mercado de apostas on-line no Brasil? Em primeiro lugar, as famílias mais vulneráveis estão sendo devastadas. O Bolsa Família, que deveria ser uma rede de proteção social, está se tornando uma fonte de lucro para as empresas de apostas. Parte do país que realmente deseja o progresso também sofre, já que o desvio de recursos do programa para as bets significa menos dinheiro sendo usado para o propósito original: melhorar a qualidade de vida de milhões de brasileiros.

A sociedade como um todo também perde. O consumo, que deveria ser impulsionado pela recuperação econômica e pela criação de novos empregos, está sendo impactado negativamente. Em vez do dinheiro do Bolsa Família circular na economia, gerando empregos e incentivando o comércio local, ele está indo parar nas mãos de grandes corporações internacionais de apostas, muitas vezes sediadas fora do Brasil. Isso resulta em menos investimentos no comércio e na produção local, gerando uma espécie de “exportação” de recursos que deveriam circular internamente no país.

Por fim, a própria saúde pública está sendo impactada. O aumento dos casos de doenças mentais e suicídios relacionados ao vício em apostas está sobrecarregando um sistema de saúde já fragilizado. Hospitais psiquiátricos, clínicas de reabilitação e serviços de apoio psicológico estão sendo cada vez mais procurados, mas muitos não têm a capacidade de atender a essa demanda crescente. E o índice de suicídio no país está aumentando.

O problema não é Dona Maria, a personagem que protagoniza essa história de desespero e ilusão. Ela é apenas mais uma vítima em um sistema cruel que se aproveita da sua vulnerabilidade. O verdadeiro culpado é a blogueira do Leblon, que, com suas promessas vazias e seu teatro bem ensaiado, engana milhares de pessoas como Dona Maria. Ela vende uma falsa esperança, mostrando repetidas vitórias que, na realidade, são cuidadosamente manipuladas para parecerem ao alcance de qualquer um.

Mas a responsabilidade vai além da influenciadora. O Estado, que deveria proteger essas pessoas, fecha os olhos para essa engrenagem predatória que devora os sonhos dos mais pobres. Sem fiscalização adequada, as apostas continuam crescendo, sem controle, transformando o azar em um negócio lucrativo à custa da destruição de vidas. A Dona Maria deseja um futuro melhor para si e para os seus, mas tem um sistema que a engana, alimenta seus sonhos para, no final, roubá-los sem piedade.

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