Marcha para Exu: Uma Celebração da Cultura Afro-brasileira
O diabo não há nas religiões de matriz africana, porque é da cultura cristã
atualizado
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No domingo 18 de agosto, a Avenida Paulista, um dos principais cartões-postais de São Paulo, foi palco de uma manifestação cultural que reuniu milhares de pessoas em uma celebração singular da espiritualidade e da ancestralidade afro-brasileira. A Marcha para Exu, realizada anualmente, atraiu uma multidão composta por praticantes de religiões de matriz africana, artistas, ativistas e simpatizantes, todos unidos pelo respeito e pela valorização das tradições culturais de origem africana.
A Marcha para Exu tem se consolidado como um evento de grande relevância no calendário cultural paulistano, não apenas pela sua dimensão, mas pelo simbolismo que carrega. Exu, orixá cultuado nas religiões de matriz africana como o candomblé, quimbanda e a umbanda, é tradicionalmente reconhecido como o mensageiro dos orixás, senhor dos caminhos e da comunicação.
Na cultura popular, porém, a figura de Exu é frequentemente estigmatizada, fruto de um processo histórico de demonização das religiões afro-brasileiras. Neste contexto, a marcha representa uma ação de ressignificação e resistência. Ao ocupar a Avenida Paulista, um espaço frequentemente associado ao poder econômico e político, os participantes afirmam a presença e a importância das culturas afro-brasileiras na sociedade. É um ato de resistência contra o racismo religioso e a intolerância que ainda afetam severamente os praticantes dessas religiões.
A diversidade foi um dos aspectos mais marcantes da marcha. Pessoas de todas as idades, cores e crenças se uniram sob o mesmo propósito: homenagear Exu e, simultaneamente, afirmar o direito à liberdade religiosa e cultural. Além dos tradicionais cânticos e toques de atabaque, a marcha contou com performances artísticas, rodas de capoeira, apresentações de maracatu e outras expressões culturais afro-brasileiras. Essas atividades, realizadas ao longo do trajeto, reforçaram a pluralidade cultural que caracteriza a herança africana no Brasil.
A marcha também foi uma oportunidade para os participantes reivindicarem direitos e denunciar a violência religiosa que, infelizmente, ainda é uma realidade para muitos. O ato de ocupar um espaço tão icônico quanto a Avenida Paulista é carregado de simbolismo, pois trata-se de um local associado a diversas manifestações políticas e sociais ao longo dos anos.
Um chamado à tolerância e ao respeito
A Marcha para Exu é, acima de tudo, um chamado à tolerância e ao respeito. Em um país onde a intolerância religiosa ainda se manifesta de formas violentas e discriminatórias, eventos como esse são essenciais para promover o diálogo inter-religioso e a compreensão mútua. Além disso, a marcha reforça a importância de valorizar e preservar as tradições culturais afro-brasileiras, que são parte integrante da identidade nacional.
Ao fim da marcha, os participantes realizaram oferendas a Exu, simbolizando a gratidão e a conexão espiritual com o orixá. Esse ato, carregado de significado religioso e cultural, concluiu a manifestação de forma poderosa, reafirmando a força e a vitalidade das tradições afro-brasileiras.
Em um país marcado pela diversidade religiosa e cultural, a Marcha para Exu se destaca como um evento que celebra essa pluralidade, ao mesmo tempo em que luta contra o preconceito e a intolerância. A ocupação da Avenida Paulista por milhares de pessoas em homenagem a Exu é um lembrete de que as tradições afro-brasileiras são vivas, pulsantes e merecem ser respeitadas e celebradas por toda a sociedade.
Exu não é o diabo: desconstruindo mitos e preconceitos
Exu, uma das divindades mais reverenciadas nas religiões de matriz africana como o candomblé, a quimbanda e a umbanda, é frequentemente alvo de um dos maiores mal-entendidos no contexto religioso brasileiro.
Ele é erroneamente associado ao diabo, uma figura do cristianismo, o que não apenas distorce a verdadeira natureza de Exu, mas também perpetua o racismo religioso que afeta as religiões afro-brasileiras.
O diabo e Exu: entidades distintas em contextos religiosos diferentes
O diabo, ou Satanás, é uma figura central na teologia cristã, representando o mal supremo, a personificação do pecado e o adversário de Deus. Ele é uma criação da tradição judaico e cristã, e não existe nas cosmologias africanas. Por outro lado, Exu é uma divindade do panteão iorubá, responsável por abrir e fechar caminhos, mediar a comunicação entre os orixás e os humanos, e garantir que as oferendas cheguem aos seus destinos. Ele é uma entidade complexa, que lida com a dualidade da vida — o equilíbrio entre ordem e caos, o sagrado e o profano.
Exu é um orixá associado à energia, à vitalidade e ao movimento. Ele é o guardião das encruzilhadas, um símbolo das escolhas e dos destinos que cada pessoa enfrenta na vida. Diferentemente do diabo, que é visto como a encarnação do mal, Exu não é inerentemente bom ou mau. Ele é, acima de tudo, um mediador, um facilitador das forças da vida, que deve ser tratado com respeito e compreensão.
A associação errônea de Exu com o diabo é um reflexo do processo histórico de colonização e escravização, durante o qual as religiões africanas foram sistematicamente demonizadas e deslegitimadas pelos colonizadores europeus.
Esse processo começou com a chegada dos missionários cristãos ao continente africano, que viam as religiões locais como primitivas e pagãs — para criar uma narrativa antagônica de quem é bom e o mal. Tudo para conquistar terras, poder político e financeiro.
No Brasil, essa visão foi reforçada com a imposição do cristianismo sobre os africanos escravizados, que foram forçados a abandonar seus nomes, suas práticas religiosas e adotar a fé dos colonizadores.
Durante a colonização, as práticas religiosas africanas foram ridicularizadas e, muitas vezes, criminalizadas. Os rituais e as divindades africanas, incluindo Exu, foram associados ao mal e ao demônio na tentativa de justificar a supressão dessas religiões e culturas. Essa demonização foi uma ferramenta de controle social e cultural, usada para subjugar os africanos escravizados e apagar a herança espiritual.
Essa associação foi perpetuada ao longo dos séculos, e até hoje Exu é frequentemente retratado de forma negativa, especialmente por aqueles que desconhecem ou não compreendem as religiões de matriz africana. Essa visão deturpada de Exu continua a alimentar o racismo religioso, contribuindo para a marginalização das religiões afro-brasileiras.
Desconstruindo mitos e promovendo o respeito
Desfazer a associação entre Exu e o diabo é essencial para promover um entendimento mais justo e respeitoso das religiões de matriz africana. É necessário reconhecer que o diabo é uma figura pertencente à teologia cristã, e não faz parte do panteão de divindades africanas. Exu, como orixá, desempenha um papel fundamental na cosmologia africana, que é completamente distinto da concepção de mal presente nas tradições judaico e cristãs.
Para os praticantes das religiões de matriz africana, Exu é um orixá protetor, cuja energia é essencial para o equilíbrio da vida. Ele é o intermediário entre os humanos e os orixás, o senhor das encruzilhadas e dos caminhos. Seu papel é garantir que a comunicação entre os mundos espiritual e material seja mantida, permitindo que as energias fluam de forma harmônica.
Reconhecer a verdadeira natureza de Exu e desvinculá-lo da imagem do diabo é também um passo importante na luta contra o racismo religioso. É uma maneira de valorizar e respeitar as tradições afro-brasileiras, que são parte integrante da cultura e da identidade nacional. Promover o respeito à diversidade religiosa é fundamental para construir uma sociedade mais justa e inclusiva, na qual todas as crenças sejam respeitadas e celebradas.
Exu, com sua complexidade e dinamismo, nos ensina sobre a importância da comunicação, do equilíbrio e da escolha. Ele não é o diabo, mas, sim, uma divindade poderosa e essencial para milhões de brasileiros que encontram nele proteção, sabedoria e força. Desconstruir os preconceitos em torno de Exu é um passo necessário para a valorização das religiões de matriz africana e para a promoção da tolerância religiosa em nossa sociedade.
Laroyê, Exu!
INDICAÇÃO DE LIVRO – “Intolerância Religiosa”, pelo mestre e doutor em linguística pela Universidade de São Paulo, o babalorixá Sidnei Nogueira. Editora Pólen Livros.
O livro apresenta um histórico da intolerância religiosa no Brasil, lembrando também de momentos importantes da história da humanidade marcados pela dominação religiosa, como o Império Romano, a Idade Média e o nazismo. A partir daí, discute a expressão “intolerância religiosa”, utilizada atualmente para descrever um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças, rituais e práticas religiosas consideradas não hegemônicas. Práticas que, somadas à falta de habilidade ou à vontade em reconhecer e respeitar diferentes crenças de terceiros, podem ser consideradas crimes de ódio que ferem a liberdade e a dignidade humanas.