Inteligência artificial, direitos autorais e o dever do Legislativo
O Senado Federal deu passo importante para se proteger a soberania cultural do Brasil aos avanços da inteligência artificial
atualizado
Compartilhar notícia
O Senado Federal deu um passo significativo ao aprovar, em votação simbólica no dia 10 de dezembro, o Projeto de Lei 2.338/2023, que estabelece um marco regulatório para o uso da inteligência artificial (IA) no Brasil. Agora, cabe à Câmara dos Deputados o desafio de aperfeiçoar e aprovar esse projeto, cujo impacto transcende a simples regulamentação tecnológica e toca em questões essenciais para a justiça social, a economia criativa e a soberania cultural do país.
A inteligência artificial, com todo seu potencial de transformação, representa uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que abre novas possibilidades para a economia e a ciência, também ameaça setores cruciais como as artes, a literatura e o jornalismo. Em todo o mundo, cresce a preocupação com o uso indiscriminado de obras protegidas por direitos autorais no treinamento de sistemas de IA generativa. Dados utilizados para alimentar essas máquinas – que incluem músicas, textos, imagens e produções científicas – são extraídos sem autorização e, mais grave, sem compensação financeira para seus autores.
No Brasil, onde a economia criativa responde por R$ 230 bilhões, ou 3,1% do PIB, o impacto da falta de regulamentação é devastador. Conforme destacou Marcos Souza, secretário de Direitos Autorais e Intelectuais do Ministério da Cultura, cada obra utilizada sem autorização em sistemas de IA pode resultar em até cinco violações de direitos autorais. O prejuízo não é apenas financeiro; ele é estrutural. Ao ignorar os direitos dos criadores, o Brasil perpetua um modelo de concentração de renda nas mãos de grandes corporações tecnológicas e condena os artistas, escritores, jornalistas e cientistas a uma invisibilidade econômica e social.
Enquanto isso, países como os Estados Unidos, a União Europeia, o Japão e a Austrália avançam com legislações específicas que combinam inovação e justiça. O AI Act europeu, por exemplo, exige transparência e facilita o licenciamento de obras, promovendo um ambiente ético e sustentável para a inteligência artificial. Nos Estados Unidos, a Califórnia já obriga empresas de IA a detalhar os dados utilizados em seus sistemas, assegurando um mínimo de responsabilidade. O Brasil não pode se furtar a esse debate global, sob pena de se tornar um paraíso de exploração criativa, com sua cultura e ciência relegadas a insumos gratuitos para conglomerados internacionais.
A ausência de regulamentação não é apenas uma questão de negligência legislativa; é também uma ameaça direta à diversidade cultural e à democracia. O desrespeito aos direitos autorais compromete a liberdade de expressão e desestimula a produção criativa. Ao deixar de remunerar os criadores, o Estado enfraquece o jornalismo independente, precariza as indústrias culturais e científicas e, consequentemente, limita o acesso da sociedade a conteúdos de qualidade. Não se trata apenas de proteger um setor econômico, mas de salvaguardar o próprio tecido social que mantém viva a cultura brasileira.
O Projeto de Lei 2.338/2023, tal como aprovado no Senado, traz avanços significativos, incluindo dispositivos sobre transparência e remuneração justa para conteúdos protegidos por direitos autorais. No entanto, é fundamental que a Câmara dos Deputados mantenha essas garantias e, se necessário, as amplie. A regulamentação da IA no Brasil deve ser construída com base em princípios que assegurem equilíbrio entre inovação tecnológica e respeito aos direitos humanos, culturais e econômicos. A criação de um ambiente de segurança jurídica não é uma concessão às indústrias criativas; é uma necessidade para o desenvolvimento de uma IA ética e genuinamente transformadora.
Por trás dessa discussão, há uma questão mais ampla: a de como o Brasil se posiciona frente à revolução tecnológica que já molda o presente e definirá o futuro. Nosso país tem a oportunidade de liderar pelo exemplo, construindo um marco regulatório que seja referência global. Mas isso só será possível se o Congresso Nacional legislar com a responsabilidade de quem compreende o impacto histórico de suas decisões.
Ao poder legislativo, resta a tarefa de agir com firmeza e visão estratégica. Este é o momento de garantir que a inteligência artificial no Brasil seja um instrumento de democratização, e não de exclusão. O PL 2.338/2023 não é apenas um texto jurídico; é uma afirmação de valores. Que a Câmara dos Deputados esteja à altura desse desafio, defendendo os direitos de quem cria, inova e contribui para a riqueza cultural e intelectual do Brasil.
Que esta oportunidade não seja desperdiçada. O tempo para agir é agora.