Feliz ano novo? Sem justiça para Sônia Maria, sem futuro para o Brasil
Difícil celebrar enquanto casos como o de Sônia Maria persistem, nos acorrentando a um passado marcado pelo que há de mais cruel no Brasil
atualizado
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É o último dia de 2024. Em um ano que deveria simbolizar avanços e celebrações, encerramos com um gosto amargo de impunidade, silêncio e indiferença. Um exemplo devastador disso é o caso de Sônia Maria de Jesus, que escancara uma ferida aberta na sociedade brasileira: a perpetuação de práticas análogas à escravidão em pleno século 21.
Sônia foi retirada de sua família aos nove anos de idade, em 1982, para trabalhar como doméstica na casa da sogra do desembargador Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis. Sem remuneração, sem direitos e isolada por sua surdez, viveu mais de quatro décadas em condições degradantes. Foi resgatada apenas em 2023, mas não sem controvérsias: uma decisão judicial determinou que ela retornasse à casa onde foi explorada, sob a justificativa de que seria “seu lugar”.
Enquanto a história de Sônia ganhou destaque pela crueldade de seus detalhes, o sistema de justiça que deveria garantir sua dignidade e reparação permanece paralisado. O Brasil, que se autoproclama o “país do futuro”, prova mais uma vez que não consegue sequer lidar com as atrocidades de seu presente – muito menos com as heranças do passado.
A escravidão nunca acabou
O caso de Sônia não é isolado. Segundo dados do Ministério do Trabalho, milhares de pessoas ainda vivem em condições análogas à escravidão no Brasil, especialmente em áreas rurais e no trabalho doméstico. O que diferencia a história de Sônia é a visibilidade que ela alcançou, em grande parte devido à conexão de seus algozes com o poder judiciário.
Mas o que acontece quando nem mesmo a exposição pública gera justiça? Encerramos o ano sem respostas concretas sobre o caso. Sua família, que passou anos procurando por Sônia, continua mergulhada na dor da espera. Sua mãe, Dona Maria José, morreu sem nunca reencontrar a filha. Essa tragédia é a personificação do que significa ser negro, pobre e vulnerável no Brasil: uma história de apagamento, de vozes silenciadas e de corpos descartados.
O país do silêncio cúmplice
O silêncio ao redor do caso de Sônia é revelador. Não houve comoção nacional. Não houve protestos massivos exigindo justiça. A mídia abordou o caso pontualmente, mas o debate não se sustentou. O poder público se acomodou, como se situações como essa fossem normais e inevitáveis.
O que isso nos diz sobre o Brasil? Que ainda somos um país profundamente colonial, onde a exploração de pessoas negras é aceita tacitamente, especialmente quando os exploradores ocupam posições de privilégio. A justiça não é cega – ela é seletiva, servindo aos interesses dos poderosos enquanto negligencia os direitos básicos dos vulneráveis.
O Brasil insiste em se proclamar um país promissor, mas como avançar enquanto as feridas do passado seguem abertas e os erros do presente permanecem impunes? A escravidão nunca foi efetivamente enfrentada. Ela apenas mudou de forma, adaptando-se ao capitalismo contemporâneo e às relações sociais marcadas pelo racismo estrutural. Casos como o de Sônia expõem que estamos presos em um ciclo de negligência e indiferença. Até que essas histórias sejam tratadas com a seriedade que merecem, não há como falarmos de um futuro. O Brasil será eternamente um país que olha para frente enquanto arrasta as correntes do passado.
Neste último dia de 2024, deveríamos refletir sobre a sociedade que estamos construindo. O silêncio e a inércia diante do sofrimento de Sônia não nos tornam apenas cúmplices, mas ativos participantes de um sistema que escolhe quem merece direitos e dignidade.
O futuro nunca chegará para um país que deixa casos como o de Sônia sem solução. Um país que normaliza a escravidão moderna é um país sem alma, sem memória e, sobretudo, sem perspectiva. Que 2025 comece com mobilização e respostas, ou continuaremos prisioneiros de uma história que nunca conseguimos superar.