WhatsApp versus Justiça: por que você deve se importar com tudo isso
O conflito existe entre os direitos de privacidade e o da segurança não é novo e deve ser apreciado com proporcionalidade e razoabilidade
atualizado
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Não é de hoje que o WhatsApp e a Justiça se digladiam em torno da liberação de informações privadas trocadas por seus usuários. De um lado, o Estado, por intermédio do Poder Judiciário, determina que o serviço forneça dados para investigações criminais. Por outro, a empresa afirma que não armazena os dados trocados entre os usuários, motivo porque não teria sequer condições de fornecê-las.
Em resposta a essa suposta negativa do WhatsApp em fornecer dados trocados por usuários do aplicativo que sejam investigados por crimes graves no Brasil, o juiz da 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo determinou a suspensão do funcionamento do WhatsApp até que a determinação judicial fosse cumprida. No entanto, menos de um dia após a determinação judicial, a 11ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo restabeleceu o funcionamento do aplicativo. De acordo com a decisão do desembargador Xavier de Souza, “em face dos princípios constitucionais, não se mostra razoável que milhões de usuários sejam afetados em decorrência da inércia da empresa” em fornecer informações à Justiça.
Pouco tempo mais tarde, o vice-presidente do Facebook na América Latina, Diego Jorge Dzodan, teve a prisão preventiva decretada por não cumprir a ordem de entregar informações do WhatsApp que poderiam colaborar com a investigação criminal referente a tráfico de drogas. Uma vez mais o WhatsApp argumentou que o serviço não armazena informações de usuários nos seus servidores.
Isso trouxe à tona o debate sobre a atuação do WhatsApp na preservação de informações e dados trocados por seus usuários e a segurança pública. Para muitos, o aplicativo deve armazenar informações para que possam ser fornecidas às autoridades quando necessário, por razões de segurança. Ou seja, entre segurança e privacidade, deveria prevalecer a segurança.
Pois bem. A última atualização do aplicativo confirmou que o posicionamento do WhatsApp está longe de se dobrar às últimas determinações judiciais que teve contra si. Quem atualizar o aplicativo terá disponível como ferramenta a criptografia ponta-a-ponta, a fim de que as mensagens e conversas travadas pelo app sejam codificadas por chave e, portanto, seja impossível a compreensão do teor da conversa se interceptada por terceiros.
Com isso, o Whatsapp retirou de si a responsabilidade pelo fornecimento desses dados, mesmo se solicitados judicialmente. Ainda que as informações sejam interceptadas, a sua descodificação se revela impossível sem o conhecimento das chaves.
Está colocado o problema: segurança x privacidade. De um lado a afirmação da necessária preservação da segurança social e de outro a privacidade de todos os usuários do aplicativo de mensagens. Em tese, os princípios constitucionais, tais como segurança e privacidade, não se confrontam. Do contrário, seríamos obrigados a admitir que a Constituição Federal é desarmônica entre seus princípios. No entanto, é possível que, em casos concretos – como esse envolvendo o Whatsapp – aconteça uma aparente colisão entre dois ou mais princípios que obrigue o Poder Judiciário a solucionar a questão.
O primeiro questionamento que devemos nos fazer é o seguinte: existem direitos absolutos? Não. Não há nenhum direito que, de forma absoluta e apriorística, se sobreponha a outro. Até mesmo o direito à vida comporta hipóteses de exceção trazidas pela própria legislação.
Permite-se, por exemplo, a interrupção da gravidez, praticado por médico capacitado, quando a gestação colocar a mulher em risco de morte, quando a gestação for resultado de estupro ou se tratar de gravidez de feto anencéfalo (decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54, em que descreveu a interrupção da gestação como parto antecipado para fim terapêutico).
Superada essa premissa, vamos para o segundo questionamento: não havendo direitos absolutos, nesse aparente conflito entre direitos de mesma hierarquia, como se determina qual o direito mais importante naquele caso? A identificação do valor ou do direito que sobressai ou prepondera quando houver colisão entre direitos fundamentais é um dos temas mais complexos e que demanda, para sua resolução, uma imensa habilidade do magistrado que julga a causa. Exige que o juiz, ao analisar o caso concreto, seja sensível para perceber qual dos valores em jogo deve prevalecer sobre o outro.Especificamente sobre liberdades individuais e segurança, o conflito não é novo. Inúmeros estudiosos do direito em todo o mundo discutiram e ainda discutem, dada sua importância, os efeitos das revelações de Edward Snowden (ex agente da NSA – Agência de Segurança Nacional), que denunciou a política de ampla espionagem realizada pelo governo norte-americano que mantinha, sob sua vigilância, centenas de milhões de cidadãos ao redor do mundo – aí incluídos até mesmo Chefes de Estado e de Governo – usando as informações colhidas para fins desconhecidos, muito embora em defesa afirmem que se trata de instrumento de guerra ao terror.
Tivemos recentemente, em terras tupiniquins, a notícia da prisão de quatro agentes da Abin – Agência Brasileira de Inteligência – sob a suspeita de que, disfarçados de portuários, vasculhavam aspectos da vida privada de opositores políticos. Vemos, portanto, que o conflito entre segurança e direitos individuais como intimidade e privacidade atinge todos nós. Desse choque, pode-se antever, como desfecho, importantes danos à segurança da nação ou aos direitos fundamentais do indivíduo.
Muito embora haja garantias constitucionais de resguardo aos direitos à intimidade, é certo que vivemos em tempos de sociedade da informação, em que a base da comunicação e acesso à informações se dá pela rede mundial de computadores. E esse acesso, em tempo real, às informações que circulam em todo mundo promoveu gradativas restrições às liberdades individuais.
Ainda que as pessoas sejam conscientizadas por meio de avisos, é forçoso admitir que os cidadãos têm, contra sua vontade, sua vida e sua rotina registradas por câmaras de segurança instaladas em todos os lugares, sejam órgãos públicos, supermercados, bancos ou outros estabelecimentos. É claro que, como disse antes, nenhum direito é absoluto e a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, XII, admite a violação das comunicações telefônicas desde que por prévia ordem judicial, nas hipóteses e formas disciplinadas por lei, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Nesse sentido, a Lei 9.296/96 veda essa específica forma de invasão da privacidade se não houver indícios da autoria ou participação em infração penal. Demais só haverá legitimidade se a prova não puder ser colhida de outra maneira.
Nos Estados Unidos a coisa acontece de forma diferente. As restrições às liberdades individuais tomou outra proporção depois dos ataques de 11 de setembro, com o controverso “USA Patriot Act”, em que são amplamente autorizadas, sem a necessidade de mandado judicial, a investigação de aspectos da vida privada, quebras de sigilo a correspondência, limitações à liberdade de expressão, instalação de grampos telefônicos e outras medidas constritivas.
É exatamente aí que mora o perigo. Seria no mínimo ingênuo não admitir a atual deturpação valorativa dessa “legítima” limitação aos direitos individuais, na medida em que essa atuação amplamente constritiva pode acabar por legitimar a ação de governos ditatoriais transvestidos como democráticos. E vamos além. Não podemos ser igualmente ingênuos de achar que transformar em regra – e não em exceção – essa prática de restrição da privacidade e intimidade pode, sim, nos levar a situações em que as informações interceptadas possam ser usadas como instrumentos de coação, chantagem, manobras econômicas, controle social ou político.
A solução desse conflito deverá ser enfrentada com a utilização dos critérios da proporcionalidade ou razoabilidade e caberá ao Supremo Tribunal Federal resolver o conflito entre esses princípios, que estão submetidos à ponderação e à capacidade argumentativa do aplicador do direito.
É importante dizer que todos os princípios tem o mesmo peso e, justamente por estarem contemplados com estatura constitucional não se fala em hierarquia normativa. Portanto, apenas em razão das peculiaridades de cada caso concreto é que será possível ao magistrado afirmar qual dos valores ou dos princípios terá preponderância sobre os demais.
É certo que dentro da perspectiva de que nossa Constituição Federal de 1988 foi promulgada ainda na ressaca da ditadura e que, por essa razão estabeleceu garantias importantíssimas à preservação de direitos que se relacionam à liberdades individuais, tais como liberdade de expressão e pensamento, privacidade, intimidade, liberdade de ir e vir, entre outros, também é certo que a gradativa restrição a esses direitos individuais entra em confronto com a pretensão do legislador originário.
Considerando, assim, que nossa sociedade mergulhou, após a ditadura, em um processo de resgate de fundamentos republicanos, afastando ao máximo a intervenção do Estado nas relações privadas, o aparente confronto entre a necessidade de informação por segurança social e a privacidade e intimidade individual deve ser resolvido de modo a buscar o equilíbrio preservando-se a privacidade, sem cessar o direito à informação e segurança, tendo em perspectiva que vivemos em uma sociedade plural em um Estado democrático de Direito.
Não são poucas as vozes que propugnam por impedir, sempre que possível, que o progresso científico de nossa sociedade globalizada viole, em qualquer grau de extensão, as garantias de defesa aos direitos humanos.
De toda maneira, a atualidade do tema impõe um alerta constante aos juristas. Isso porque, na maioria das vezes, o cerceamento dos direitos individuais é implementado sob as matizes de fortes argumentos relacionados à segurança ou patriotismo, mas que, no fundo, disfarçam interesses escusos nem sempre identificáveis.