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Violência obstétrica e desumanização do parto no Brasil

A violência obstétrica pode ser definida como o conjunto de ações perpetradas justamente pelos profissionais responsáveis por garantir o bem-estar da gestante e de seu filho

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Na foto, um bebê recém nascido
1 de 1 Na foto, um bebê recém nascido - Foto: iStock

“Enquanto meu marido não estava, eu estava absolutamente, completamente sozinha e vulnerável e elas se aproveitaram disso para me desrespeitar verbalmente, me desrespeitar fisicamente. Uma das enfermeiras puxou o meu cabelo, me puxou pela cabeça por trás e me forçou a deitar na maca”. Esse é o triste relato de Rafaela Ramos, professora de Brasília, uma das milhões de vítimas de violência obstétrica no Brasil.

Os dados são assustadores. De acordo com a pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada em 2012 e coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma em cada quatro mulheres já sofreu violência obstétrica.

Além da violência verbal e da humilhação em um dos momentos mais sensíveis e sublimes da vida, as mulheres tem sido submetidas a procedimentos médicos absolutamente agressivos e desumanos, desde o pré-natal até o parto. A utilização indiscriminada da conhecida – e proibida – manobra de Kristeller, o estabelecimento das cesarianas como regra, a proibição da participação do pai da criança durante qualquer procedimento, a proibição da entrega de prontuários às parturientes, negligenciar alimentação à mulher, realizar exames de toque de forma recorrente e rompimento da bolsa gestacional sem autorização são algumas amostras a que nossas mulheres vem sendo submetidas no Brasil.

Como resultado de um tratamento desrespeitoso e degradante em um momento tão delicado, muitas mulheres chegam a ter reações semelhantes às de vítimas de estupro, passando a rejeitar o próprio corpo, temer relações sexuais, além do pavor de uma nova gestação ou ansiedade por outra na tentativa de substituir as péssimas memórias.

E é sobre essa triste realidade que trataremos no artigo de hoje.

Mas o que seria violência obstétrica?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a expressão como o conjunto de atos desrespeitosos, abusivos, de maus-tratos e de negligência contra a mulher e o bebê, antes, durante e depois do parto, que equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais. Dito de outra forma, a violência obstétrica pode ser definida como o conjunto de ações perpetradas justamente pelos profissionais responsáveis por garantir o bem-estar da gestante e de seu filho.

Essa violência obstétrica pode se dar, fundamentalmente, de três maneiras: o desrespeito, o abuso e a negligência. Por desrespeito, é possível se entender aquelas práticas de xingamento, de ofensas verbais, tratamento jocoso e humilhante à parturiente. O abuso é aquela prática capaz de restringir o livre exercício de direitos fundamentais da gestante, de qualquer forma (exemplo disso é a realização de cesariana, em que o profissional da saúde induz a gestante em concordar com a realização da cirurgia, enganando-a de sua própria condição de saúde e/ou de seu filho). E, por fim, a negligência, em que os profissionais de saúde adotam a prática de atos que estão no limiar do erro médico como, por exemplo, procedimentos médicos proibidos.

Em 2014, a Organização Mundial da Saúde publicou “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”. Nesse documento, a OMS condena a violência obstétrica e afirma que várias dessas práticas eram efetivamente consideradas normais até o fim do século XX e, portanto, seriam toleradas socialmente. No entanto, o contexto social é outro e já não estamos mais no século XX. O empoderamento feminino e a mudança da mentalidade social sobre o tema – ainda que pequena e lenta – vem promovendo debates sobre o assunto.

Em abril de 2015, o Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, recebeu da Artemis, ONG que combate a violência contra a mulher, um documento que relata a violência obstétrica no Brasil. Ali está registrado o Projeto de Lei 7.633/14, elaborado pela ONG e assinado pelo deputado Jean Wyllys, que define os direitos da mulher durante a gestação e o parto, inclusive nos casos de aborto, bem como os direitos e deveres dos profissionais de saúde.

Ainda em 2015, o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) publicaram novas regras de empoderamento da mulher, contendo informações relevantes para reduzir o número de cesarianas nas redes privadas e estimular o parto normal. Uma das medidas é a obrigatoriedade dos convênios médicos fornecerem o cartão da gestação, em que será obrigatório o registro de todo o pré-natal, além de carta de informação à gestante com orientações para que a mulher consiga tomar as decisões sobre o tipo de parto. Há ainda a criação do “partograma”, documento deverá ser preenchido pelos obstetras com informações detalhadas sobre o trabalho de parto, indicando a necessidade ou não da cesariana.

Recente passo importante na garantia dos direitos da gestante e do bebê foi dado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), dia 20 de julho de 2016, que anunciou resolução que determina que o parto cesáreo só pode ser realizado a partir de 39 semanas de gestação. Antes, a entidade estabelecia em 37 semanas o período liberado para o procedimento. Para o coordenador da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia, José Hiran Gallo, a medida reforça a decisão da mulher e o amparo jurídico para a proteção do feto. “O médico tem a obrigação de explicar quais procedimentos devem ser adotados para a paciente. O conselho quer resguardar a autonomia da mulher brasileira”, afirma.

É possível verificar, portanto, um movimento – ainda que tímido – das instituições. Nos termos das Portarias MS nº 569/2000 e 1.067/05, bem como da Resolução RDC nº 36/2008 da ANVISA, é direito da gestante e de seu recém nascido, entre outros:
» o acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério;
» o acompanhamento pré-natal adequado;
» o conhecimento e o acesso à maternidade em que será atendida no momento do parto;
» a assistência ao parto e ao puerpério e que essa seja realizada de forma humanizada e segura, bem como direito à assistência neonatal de forma humanizada e segura;
» a atendimento adequado e seguro;
» à presença de acompanhante durante o trabalho de parto e pós-parto imediato de acordo com a Lei nº 11.108/05.

Estamos aqui, uma vez mais, tratando de uma das formas de violação do princípio da dignidade da pessoa humana. E exatamente em razão dos alarmantes e cada vez mais cotidianos relatos de violência obstétrica foi que a Ilustríssima sra. Procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira, em 13 de julho de 2016, em resposta às denúncias de prática desse tipo de crime no Hospital Regional de Samambaia, lançou impecável Recomendação à Coordenação e à Direção da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, ao Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, ao Diretor do Hospital Regional de Samambaia e ao Coordenador da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal, ao Secretário de Saúde do Distrito Federal, ao Diretor do Hospital Universitário de Brasília e ao Diretor do Hospital das Forças Armadas, aos órgãos de Coordenação e à Direção da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasilia.

O Ministério Público recomenda, a partir desse documento, que sejam adotadas providências necessárias para coibir a prática de violência obstétrica nas dependências dos hospitais e maternidades públicos do Distrito Federal, de modo a garantir atendimento humanizado às gestantes e parturientes atendidas, em conformidade com a legislação que trata da questão. Recomendou, ainda, aos órgãos de Coordenação e Direção da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasilia que, independentemente de previsão curricular, promovam aulas e discussões, no ambiente acadêmico, sobre humanização no atendimento a mulheres durante os períodos de gestação, pré-parto, parto, pós-parto e pós-abortamento, abordando a questão da violência obstétrica.

Um dos pontos que mais chamam a atenção de quem lê a Recomendação do Ministério Público Federal diz respeito à resposta do Poder Público às denúncias feitas contra os hospitais. Relata a il. Procuradora da República que tanto o Coordenador de Graduação da Faculdade de Medicina da UnB, quanto o Diretor do Hospital Regional de Samambaia e o corpo clínica de Obstetrícia do Hospital Regional de Samambaia, em resposta às denúncias feitas, limitaram-se a se preocupar em repudiar, de forma agressiva, vexatória e afrontosa o próprio denunciante, sem adotar uma única providência para a apuração das condutas denunciadas. Ou seja, os atos denunciados são preocupações de menor importância ao Poder Público, que voltou seus esforços para agredir o denunciante e não para estancar o grave problema da violência obstétrica que temos enfrentado do país.

Violência obstétrica é crime! Identificando a ocorrência da violência obstétrica, exija cópia dos prontuários da grávida e do bebê, anote os fatos para não esquecê-los e, após, busque auxílio de um advogado a fim de ter seus direitos respeitados. O hospital, o médico e até mesmo o plano de saúde podem ser responsabilizados.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo elaborou uma cartilha para que as mulheres possam se conscientizar e identificar se são ou se conhecem alguém que tenha sido vítima desse tipo de violência. Para ter acesso, clique aqui.

A Agência Senado publicou vídeo que traz relatos fortes e debate a preocupação de vários segmentos sociais com a violência obstétrica. Se tiver interesse, clique aqui.

Como disse Rafaela Ramos, “o protagonista do parto não é o médico. O protagonista do parto é a mãe. A gente precisa ter o poder do conhecimento mesmo. A gente precisa saber do que está acontecendo porque o corpo é nosso”.

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