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Sociedade precisa assumir a responsabilidade pelo trabalho escravo

Não são apenas os empresários gananciosos os culpados. Nós nos questionamos sobre nossas opções de consumo?

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1 de 1 chained with master key hands of an adult man - Foto: iStock

Na semana passada, várias matérias foram veiculadas noticiando denúncias de trabalhadores de uma gigante automobilística que supostamente estaria obrigando seus funcionários a usarem fralda geriátrica durante a jornada de trabalho, de modo que fosse possível restringir ao máximo a quantidade de tempo de “trabalho perdido” em idas ao banheiro. Acusações de mesma natureza foram feitas a outras inúmeras empresas de diversos segmentos, mas ainda não foram colhidas provas que comprovassem a situação denunciada.

Acusações de manutenção de trabalhadores em situação análoga a de escravidão não são novas. No ano passado, o jornal britânico Guardian fez uma extensa matéria sobre as condições humilhantes e degradantes a que empresas de telemarketing submetem seus funcionários.

A Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, foi sem dúvida, um passo fundamental para que o Estado brasileiro reconhecesse a ilicitude do direito de propriedade de uma pessoa sobre outra. O problema, no entanto, não deixou de existir, muito embora aconteça em um formato diferente do que acontecia até o século 19.

Estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) são assustadoras. Seriam pelo menos 20 milhões de trabalhadores submetidos a condições de trabalho análogas a de escravo. Dos quais, 55% são mulheres e crianças. 44% de todas as vítimas são imigrantes e os números também revelam que quanto maior a situação de irregularidade do imigrante no país, crescem as chances de sua submissão a condições degradantes e humilhantes no trabalho.

No Brasil, por intermédio da Lei de Acesso à Informação, foi publicada a quarta edição da conhecida “Lista de Transparência sobre Trabalho Escravo Contemporâneo”. No documento foram expostos dados de empregadores autuados em decorrência de caracterização de trabalho análogo ao de escravo e que tiveram decisão administrativa final entre abril de 2014 e abril de 2016. Uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal, em dezembro de 2014, impediu o governo federal de divulgar novas atualizações do cadastro de empregadores flagrados com mão de obra escrava. A Ministra Cármen Lúcia revogou a medida cautelar que impedia a divulgação da lista em 16 de maio deste ano, mas como o Ministério do Trabalho ainda não publicou uma nova relação e não possui calendário para essa questão, uma nova Lista de Transparência foi solicitada via LAI para que a sociedade fosse informada a respeito do que se passa no Brasil.

O governo federal brasileiro assumiu, em 1995, a existência de trabalho escravo contemporâneo, sendo uma das primeiras nações do mundo reconhecer, oficialmente, a existência do problema no país. De 1995 a 2014, a OIT acredita que, apenas no Brasil, mais de 47 mil trabalhadores tenham sido libertados de situações análogas à de escravidão. Os dados são aterrorizantes.

O nosso Código Penal tipifica como crime a redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo, nos seguintes termos:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I – contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

Para que esteja caracterizado o crime do artigo 149 do Código Penal, é necessário a presença de ao menos 1 dos seguintes elementos:
1) trabalho forçado, em que o indivíduo é obrigado a submeter-se a condições de trabalho de exploração, sem a possibilidade de que o sujeito deixe o ambiente de trabalho sejam em razão de dívidas, seja por ameaças por violência física ou psicológica;
2) jornada exaustiva, com expediente desgastante, com intervalo entre as jornadas insuficiente e/ou que o descanso semanal não seja respeitado;
3) servidão por dívida, em que o indivíduo fica submetido ao pagamento de dívidas ilegais referentes a gastos com transporte, alimentação, aluguel e ferramentas de trabalho;
4) condições degradantes, consubstanciadas na precariedade do trabalho e das condições de vida sob a qual o trabalhador é submetido, tais como alojamento precário, falta de assistência médica, alimentação de péssima qualidade e/ou em pequenas quantidades, falta de saneamento básico e de água potável, maus-tratos e violência.

Em zonas urbanas, a situação de imigrantes latino americanos, como bolivianos, paraguaios e peruanos, merece nossa atenção. Inúmeros fatores econômicos contribuíram ao aumento significativo de estrangeiros no Brasil nos últimos anos. De acordo com dados do Ministério da Justiça, de 2010 até 2012, o número de estrangeiros em situação irregular no Brasil cresceu consideravelmente. O sonho de uma vida melhor muitas vezes se transforma em pesadelo. O Ministério Público Federal tem concentrado esforços consideráveis na erradicação do chamado ciclo do trabalho escravo, especialmente na fiscalização de propriedades e na repressão por meio da punição administrativa e econômica de empregadores flagrados utilizando mão de obra escrava. Mas, ao invés do que podemos imaginar, não é apenas o empregador que merece nossa atenção. É preciso ir além.

O que é possível se inferir do artigo 149 do Código Penal é que o chamado trabalho escravo contemporâneo não se caracteriza por meras infrações trabalhistas. Trata-se de crime contra a dignidade humana. Trata-se de submissão de um indivíduo a situação que o degrada, que o humilha nas condições mais fundamentais da vida humana. A sujeição de alguém em situações análogas à escravidão não representa, apenas, um desrespeito à legalidade exposta na legislação. Vai além disso. Significa que muito além de ter violado uma lei, o empregador passou muito dos limites toleráveis pela própria sociedade porque, em algum momento, acreditou-se dono de outro ser humano. Acreditou ser possível desumanizar, objetificar e retirar a dignidade desse ser humano.

Exposta uma parte da ferida, vamos à outra parte.

Comecemos por tentar entender o porquê da existência de trabalho escravo em pleno 2016. São muitos os fatores e, entre eles, estão a ganância pelo lucro das empresas de um lado e, de outro, o estilo de consumo que se tem perpetuado nos dias de hoje. Tomemos como exemplo o sujeito que no Pará cata e vende castanhas a R$ 5  o quilo, mas que, nas cidades grandes, o produto é vendido a R$ 40 o quilo, na lojinha de produtos orgânicos.

Ou as lojas de roupas que muito embora vendam seus produtos por preços exorbitantes, pagam R$ 5 às costureiras para cada peça feita. Como não desconfiar de que esses produtos tem origem em trabalho escravo contemporâneo? Não estou aqui dizendo que todas as empresas se utilizam de trabalho escravo. Não é isso. Pretendo apenas tentar plantar uma dúvida nas nossas cabeças sobre o assunto. Um grave problema como esse, enfrentado em todo mundo, não tem um único lado: o lado das grandes empresas que exploram seus trabalhadores para arrecadar maiores lucros. O que precisamos questionar é: em que medida eu, indivíduo pensante, coopero para a manutenção desses trabalhadores em situações análogas à escravidão?

Talvez a sociedade precise parar para refletir mais sobre o tipo de produto que consome. Talvez esse seja um primeiro passo. Talvez seja o caso de pararmos para questionar se uma blusinha vendida por uma fast fashion a R$ 10 efetivamente remunera dignamente as personagens da cadeia de produção. Em outras palavras, em que medida ajudamos a alimentar o ciclo do trabalho escravo?

Sabemos que muitas dessas empresas terceirizam grande parte de sua cadeia de produção. Esse é um fatores que seriam capazes de dificultar, em algum grau, que as grandes empresas tenham conhecimento sobre que tipo de trabalho seus terceirizados exploram: se estão mantendo seus trabalhadores em situação de escravidão ou não.

No entanto, esse não pode ser um fator de desculpa dessas empresas para se desresponsabilizar pela exploração de trabalhadores por terceiros. As empresas que terceirizam devem não apenas saber, mas serem controladores de seus subcontratados, de modo que tenham inteiro conhecimento de todo o ciclo de produção e não apenas da parte dele. As empresas precisam não apenas saber, mas se comprometer a dar fim nesse ciclo de trabalho escravo, de modo que, de fato, deixem de contribuir, ainda que indiretamente, na perpetuação do problema da submissão de pessoas à situação de escravidão contemporânea.

Não dá mais para a sociedade, como um todo, continuar a transferir a responsabilidade por esse problema tão grave ao outro. Devemos parar de responsabilizar só o empresário e o empregador, sem parar pra pensar em toda a cadeia que alimenta e colabora para a perpetuação desse crime. Esse problema é social. É de todos nós e de cada um de nós.

A erradicação do problema perpassa, ainda, pela prevenção e assistência ao trabalhador libertado, tanto por meio de ações da sociedade civil como pela adoção de políticas públicas, para que se altere a situação de extrema pobreza e vulnerabilidade, interrompendo o ciclo de reincidência do ciclo de exploração.

A questão não é simples e a solução não é imediata. Mas é preciso darmos um grande primeiro passo, não apenas fortalecendo as instituições para que apliquem, cada dia mais, penas mais severas às empresas que usem ou alimentem o trabalho escravo. É preciso que cada um de nós, integrantes de um tecido social cada dia mais questionador, repensemos sobre as nossas próprias formas de consumo, que tomemos a frente para sabermos melhor quais são, por exemplo, as empresas que revendem produtos que sabidamente foram fabricados por intermédio da exploração do trabalho escravo.

Está na hora de sermos mais responsáveis pelos problemas que assolam nossa sociedade, que estão mais próximos da nossa vida do que podemos imaginar e que, ainda que inconscientemente, acabamos por alimentar.

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