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Proteção legal aos animais: nós falhamos como uma sociedade solidária

Há um surgimento desproporcional de casos de abandono e maus-tratos contra animais e uma relação direta de negligenciamento das autoridades a esse tipo de problema

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1 de 1 cachorro - Foto: iStock

No ano de 2009, um filme estrelado por Richard Gere comoveu o mundo. “Sempre ao Seu Lado” conta a história real de um professor universitário que, ao retornar do trabalho, encontra na estação de trem um filhote de cachorro da raça akita. Sem ter como deixá-lo na estação, Parker o leva para casa. Hachi cresce e passa a acompanhar Parker até a estação de trem todos os dias, retornando ao local no horário em que o professor está de volta. A relação de amor, afeição e lealdade entre Parker e Hachi é o fundamento do filme, que comove a todos por ser capaz de retratar como é possível um ser humano desenvolver amor profundo por seus animais de estimação.

Histórias comoventes sobre relações entre o homem e seu animal de estimação apenas reflete a realidade que vivemos nos dias atuais: os animais domésticos ganharam uma importância gigantesca no cotidiano das pessoas, estando inseridos no seio familiar como membros da família. Tanto assim que não raro chegam pedidos nas varas de família para estabelecimento de “guarda compartilhada” dos animais de estimação, nos casos em que os “pais” dos bichinhos resolvem se separar.

Por outro lado, não são poucas as histórias que ouvimos sobre a infância de alguns que, por diversão, jogavam sal em sapo para vê-los agonizar de dor. Ou, ainda mais recente, vídeos que viralizaram na internet, em que donos de gatos colocam pepinos próximo dos animais, sem que percebam, normalmente em momento em que o bicho está comendo ou dormindo, apenas para ver seus gatos pularem apavorados. Mal sabem eles que o pavor dos gatos por pepinos é porque os confundem com um de seus predadores, a cobra. Esse tipo de “brincadeira” não encontra aceitação na nossa sociedade. Ou, pelo menos, não deveria encontrar.

Acredito ser pertinente refletirmos sobre a importância do princípio constitucional da solidariedade no nosso cotidiano. Uma das maiores proteções trazidas pelo princípio da solidariedade abrange o meio ambiente equilibrado. Na parte final do caput do art. 225 da Constituição Federal caracteriza norma assecuratória do direito de uso do bem ambiental ecologicamente equilibrado para gerações futuras. Assim, já de início, é importante afirmar que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é uma das bases do conjunto de direitos fundamentais de terceira geração ou dimensão, ligados ao valor da solidariedade. E exatamente em razão desses direitos fundamentais que a Constituição previu proteção contra abusos sobre o meio ambiente, incluído, aqui, a proteção contra abusos, maus tratos e abandonos de animais. 

No entanto, o que temos testemunhado é o surgimento desproporcional de casos de abandono e maus-tratos contra animais e uma relação direta de negligenciamento das autoridades a esse tipo de problema. A proteção garantida pela Constituição Federal não tem sido suficiente, até mesmo por consequência do pouco conhecimento que as pessoas têm sobre as leis e os procedimentos necessários para denunciar esses abusos.

No que se refere ao conceito de “crueldade”, o Decreto 24.645 de 1934 estabelece não apenas algumas hipóteses de ações cruéis puníveis, mas também estabelece algumas medidas de proteção aos animais. Muito embora a legislação tenha pouco mais de 80 anos, seus preceitos são absolutamente louváveis por colocar sob tutela do Estado ˜todos os animais existente no país˜ e atribuir ao Ministério Público a função de substituto legal dos animais, assim como os membros das ˜Sociedades Protetoras dos Animais˜ para assistência em juízo.

O artigo 3º do referido Decreto enumera 31 hipóteses de maus tratos e que sujeitam o agente à penalidades. É importante trazer algumas hipóteses consideradas maus tratos pela legislação:

“V – abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária;

VII – abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação;

XV – prender animais atrás dos veículos ou atados às caudas de outros;

XXV – engordar aves mecanicamente;

XXVI – despelar ou depenar animais vivos ou entregá-los vivos a alimentação de outros;

XXVIII – exercitar tiro ao alvo sobre patos ou qualquer animal selvagem ou sobre pombos, nas sociedades, clubes de caça, inscritos no Serviço de Caça e Pesca;

XXIX – realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécies ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado;

XXX – arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculos e exibi-los, para tirar sortes ou realizar acrobacias;

XXXI – transportar, negociar ou caçar, em qualquer época do ano, aves insetívoras, pássaros canoros, beija-flores, e outras aves de pequeno porte, exceção feita das autorizações para fins científicos, consignadas em lei anterior.”

Como é possível verificar da simples leitura da lei é que, apesar da idade, o Decreto já trazia uma moderna compreensão dos direitos dos animais em nossa sociedade, estabelecendo vedações a práticas contrárias aos interesses dos animais. Contudo, até mesmo por questões culturais, esses direitos ficam de lado e o que se vê é, a bem da verdade, uma espetacularização e o estabelecimento de um mercado por trás de abusos contra animais.

Há anos a Espanha luta bravamente para o fim da corrida de touros e da tourada. Nesses casos, a espetacularização da crueldade contra touros é lamentável. Em abril de 2016 já eram 100 cidades com expressa proibição a touradas.

Outra triste situação é a dos animais de circo. Hoje, mais de 30 países proíbem a utilização de animais em circos e há uma mobilização mundial para libertação desses animais da situação de total humilhação e graves maus tratos a que são submetidos, que vão desde restrição total de liberdade até surras e torturas por horas seguidas.

Pedido de vista formulado pelo ministro Dias Toffoli suspendeu o julgamento, no Plenário do Supremo Tribunal Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4983, por meio da qual o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, questiona a validade da Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado.

Em sessão realizada em agosto de 2015, o relator, ministro Marco Aurélio, votou pela procedência da ação e afirmou que o dever de proteção ao meio ambiente (artigo 225 da Constituição Federal) sobrepõe-se aos valores culturais da atividade desportiva, diante da crueldade intrínseca aplicada aos animais na vaquejada. Por outro lado e no contrafluxo do mundo todo, foi aberta divergência para afirmar que a vaquejada seria uma importante manifestação cultural, de modo que a Ação Direta deveria ser julgada improcedente.

No entanto, o Ministro Luís Roberto Barroso apresentou seu voto-vista, acompanhando o relator pela procedência da ação. Em seu voto, o ministro Barroso reconheceu a importância da vaquejada como manifestação cultural regional, no entanto, afirmou que esse fator não torna a atividade imune aos outros valores constitucionais, em especial ao valor da proteção ao meio ambiente. “A Constituição veda expressamente práticas que submetam os animais à crueldade”, disse.

Nessa semana, o governo da cidade de Buenos Aires noticiou que o zoológico da cidade, que conta com 140 anos, será fechado. Essa decisão foi tomada após denúncias de maus tratos e até mesmo morte dos animais, que não tinham os cuidados mínimos necessários à sobrevivência deles, especialmente no inverno. Parte dos animais será leiloada e outra parte será doada a santuários. O que vemos é uma propagação desmedida de abusos contra animais, totalmente maquiada pela falaciosa beleza da interação entre animais selvagens e humanos.

O famoso parque temático Sea World é um ótimo exemplo disso. Orcas são raptadas dos oceanos e presas em minúsculos tanques para treinos e exposição em shows para os visitantes do parque. A crueldade contra esses animais passou a ser melhor observada após a morte de uma treinadora por uma das baleias mais agressivas da história do Sea World. “Black Fish”, um documentário sobre as verdades do Sea World apavorou os Estados Unidos e o mundo, ao mostrar o nível de sofrimento a que os animais aquáticos são submetidos para que as famílias visitantes do parque pudessem ser entretidas. É um absurdo desmedido.

Desde a Revolução Francesa, adotamos a solidariedade como um de nossos fundamentos e passamos a reinventar nossas noções de vida em comunidade. Sociologicamente, solidariedade nos remete à ideia de que todos nós e cada um de nós somos uma peça importante da nossa vida em comunidade. Dentro desse contexto, os animais também fazer parte dessa vida social complexa não podendo serem vistos como serviçais ou meros objetos para exploração, a serviço das nossas necessidades. Esse tipo de pensamento amesquinhado não tem encontrado mais lugar nem mesmo na legislação.

Já passou da hora de nossa sociedade, formada sob os valores da solidariedade, parar de fingir que não vê o que tem acontecido com nossos animais, com nosso meio ambiente. Precisamos dizer não aos circos que usam animais como atração. Precisamos dizer não à espetacularização dos maus tratos contra animais. Precisamos sair da ignorância e nos colocarmos contra o comércio que arrecada milhões às custas das vidas de animais explorados e submetidos a uma vida de abuso e tristeza. Precisamos dizer não à histórias como as de Juma, de Tílíkum, de Cecil e tantos outros. Precisamos parar de falhar como sociedade.

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