Os relacionamentos poliafetivos e o papel do Poder Judiciário
Os filmes “Vicky Cristina Barcelona”, “E Sua Mãe Também”, “Os Sonhadores” e “Três Formas de Amar” são exemplos de como a arte imita a vida há tempos. Essas obras exploram um tema em comum: retratar a complexidade das relações humanas mostrando que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo e manter, de […]
atualizado
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Os filmes “Vicky Cristina Barcelona”, “E Sua Mãe Também”, “Os Sonhadores” e “Três Formas de Amar” são exemplos de como a arte imita a vida há tempos. Essas obras exploram um tema em comum: retratar a complexidade das relações humanas mostrando que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo e manter, de forma saudável, um relacionamento entre elas.
Em abril deste ano, a revista “Piauí” publicou um belíssimo diário sob a perspectiva de três mulheres casadas no Rio de Janeiro. O amor que nutre o envolvimento de Ana, Nina e Verônica (nomes fictícios) vem acompanhado da necessidade de reconhecimento social, de que aquele modelo é tão legítimo quanto qualquer outro. E é exatamente isso que nossa sociedade tem experimentado nos últimos tempos. Esta foi a primeira união poliafetiva do Brasil oficializada – nesse caso, entre três mulheres -, um importantíssimo reconhecimento desse modelo de família.
O 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, que acabou se especializando em direito de família, propõe o debate sobre questões relacionadas ao modelo estabelecido socialmente acerca do que é família desde o ano passado. Foi esse mesmo cartório que registrou a união de Ana, Nina e Verônica em outubro de 2015. Os reflexos foram imediatos. Uma das companheiras conseguiu inserir as demais no plano de saúde de sua empresa.
A união também inclui testamentos vitais e de bens. O próximo passo da nova família é pleitear pensão previdenciária e declaração conjunta no Imposto de Renda. A nova família agora quer aumentar. A criança terá, então, os sobrenomes das três mulheres na certidão, um registro multiparental. O segundo registro de união poliafetiva no país, entre duas mulheres e um homem, foi feito em abril deste ano.
O artigo 1.723 do Novo Código Civil afirma que a união estável é uma entidade familiar entre homem e mulher, exercida contínua e publicamente, semelhante ao casamento. Hoje, é reconhecida quando os companheiros convivem de maneira duradoura e com intuito de constituição de família. No entanto, ao cuidar de núcleo familiar, o Código afirma que tal conceito pode representar um grupo de pessoas ligadas entre si por relações pessoais e patrimoniais resultantes do casamento, da união estável e do parentesco. Seriam esses fundamentos que dariam sustentação legal aos registros das uniões estáveis que não seguem o padrão social.
O reconhecimento de legalidade dessas uniões poliafetivas, portanto, significa uma verdadeira evolução dos direitos fundamentais. Inúmeros setores vêm provocando o debate sobre o tema, já que a questão envolve múltiplas esferas do Direito. Em razão da complexidade do debate, a corregedora-Geral de Justiça, ministra Nancy Andrighi, recomendou às serventias extrajudiciais de notas que não realizem lavratura de novas escrituras declaratórias de uniões poliafetivas até a conclusão de pedido de providências sobre o tema no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) formulou pedido ao CNJ em que postula a regulamentação das lavraturas de escrituras públicas de uniões poliafetivas. Para a associação, há inconstitucionalidades e sustenta que a expressão “união poliafetiva” acaba, por via transversa, a validar relacionamentos com formação poligâmica, em violação ao §3º do art. 226 da CF, que limita “a duas pessoas a constituição de união estável”.
Em análise preliminar do caso, a ministra Nancy entendeu ser necessária a “prévia manifestação das Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo sobre os fatos e argumentos narrados”, muito embora tenha negado o pedido liminar feito pela ADFAS. A magistrada ainda explicou que se revela necessário promover audiências públicas no Conselho Nacional de Justiça para ouvir a sociedade e entidades ligadas ao tema. As discussões vão possibilitar o estudo aprofundado da questão para que a Corregedoria analise a possibilidade de regulamentar o registro civil das uniões com fundamento no poliamor.
Nancy Andrighi já solicitou a manifestação das Corregedorias Gerais dos tribunais de Justiça do Rio de Janeiro e de São Paulo sobre os fatos apontados na representação. Também foi solicitado às Corregedorias de todos os tribunais estaduais do país que informem suas serventias sobre a existência do processo e da sugestão da Corregedoria Nacional de não proceder aos registros.
O debate, à toda evidência, é relevantíssimo, sendo importante levar em conta não apenas o fato de que, para a Constituição, o conceito de família é plural e aberto. Como muito bem afirmado pela tabeliã Fernanda Leitão, do 15º Oficio de Notas do Rio de Janeiro: “O que importa no Direito de Família é a relação de afeto que existe entre as pessoas. Qualquer tipo de união estável existe sem o papel (escritura). O papel vai servir para ratificar e regular aquela relação”.