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O dia em que o STF disse que o corpo da mulher é da mulher

O ministro Luís Roberto Barroso afirmou que a criminalização do procedimento é incompatível com a autonomia da mulher

atualizado

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O ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal levou a julgamento, na última terça-feira (29/11), voto histórico no Habeas Corpus 124.306/RJ, no qual decidiu que praticar aborto nos três primeiros meses da gestação não pode ser considerado crime.

Em seu voto, o ministro afirmou que a criminalização do procedimento é incompatível com a autonomia da mulher, com seus direitos sexuais e reprodutivos, com a integridade física e psíquica da gestante e com o princípio da igualdade de gênero.

Disse, ainda, que os efeitos da criminalização do aborto atingem de maneira desproporcional as mulheres pobres e que não se trata de defender a disseminação do procedimento, mas de atuar para que seja “raro e seguro”. “O pressuposto do argumento aqui apresentado é que a mulher que se encontre diante desta decisão trágica – ninguém em sã consciência vai supor que se faça um aborto por prazer ou diletantismo – não precisa que o Estado torne a sua vida ainda pior, processando-a criminalmente”, disse o ministro.

Ou seja, o magistrado afirmou que nenhuma mulher deve ser obrigada a manter uma gestação indesejada. Muitos foram os pontos delicados abordados pelo ministro em seu voto, cujos mais importantes devem ser destacados.

Sobre a autonomia da mulher, afirmou o Ministro Barroso: “Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?”

No que tange à integridade física e psíquica, declarou Barroso: “A integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. Aquilo que pode ser uma bênção quando se cuide de uma gravidez desejada, transmuda-se em tormento quando indesejada”.

“A integridade psíquica, por sua vez, é afetada pela assunção de uma obrigação para toda a vida, exigindo renúncia, dedicação e comprometimento profundo com outro ser. Também aqui, o que seria uma bênção se decorresse de vontade própria, pode se transformar em provação quando decorra de uma imposição heterônoma. Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher.”

Um dos pontos mais interessantes no voto do ministro Luís Roberto Barroso é a igualdade de gênero. O magistrado ressaltou a histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens, fato esse que acabou por institucionalizar a desigualdade socioeconômica entre os gêneros, promovendo exclusão, discriminação e estereótipo da identidade feminina e de seu papel social — inclusive no pertinente à visão romantizada ou idealizada em torno da maternidade que, na realidade, pode representar um fardo pesadíssimo para algumas mulheres. “Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não”, conclui o juiz.

Foi ressaltado, ainda, que ao criminalizar o aborto até o terceiro mês de gestação o Estado submete mulheres pobres a procedimentos perigosos e clandestinos, transmudando a questão em gravíssimo problema de saúde pública. “Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito.”

Quanto à eterna controvérsia sobre o início da vida, o ministro se posicionou. “De um lado, [há] os que sustentam que existe vida desde a concepção, desde que o espermatozoide fecundou o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De outro lado, estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno.”

“Não há solução jurídica para esta controvérsia. Ela dependerá sempre de uma escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida. Porém, exista ou não vida a ser protegida, o que é fora de dúvida é que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno nesta fase de sua formação. Ou seja: ele depende integralmente do corpo da mãe.”

Para aqueles que até hoje se utilizam de argumentos machistas para negar às mulheres o direito de decidir sobre o aborto, tal como “se tivesse fechado as pernas, não precisaria abortar”, o STF se mostrou não apenas progressista, mas claramente utilizou – como já vem fazendo há algum tempo – de argumentos feministas no voto: “O direito das mulheres a uma vida sexual ativa e prazerosa, como se reconhece à condição masculina, ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos. Parte dessas disfunções é fundamentada historicamente no papel que a natureza reservou às mulheres no processo reprodutivo. Mas justamente porque à mulher cabe o ônus da gravidez, sua vontade e seus direitos devem ser protegidos com maior intensidade”.

Em um país cuja população é majoritariamente conservadora, a decisão do Supremo gerou repercussão e abriu ampla discussão acerca do tema. O importante, no entanto, é que nossa sociedade passe a refletir mais racionalmente sobre questão, deixando de lado posicionamentos pessoais religiosos e filosóficos que envolvem o problema.

Isso porque a criminalização do aborto, ao contrário do que muitos podem pensar, não ajuda a diminuir a quantidade de abortos praticados. Ao revés, apenas ajuda a manter as mulheres pobres à margem dos recursos possíveis, agravando, cada dia mais, o problema de saúde pública que a clandestinidade representa.

Nossa sociedade deveria compreender que a criminalização do aborto tem como fundamento mais relevante a desigualdade entre homens e mulheres, questão que deveria ter sido há muito superada, mas infelizmente ainda está maleficamente arraigada em nosso seio social.

Após o julgamento do Habeas Corpus 124.306, que apesar de não ser vinculante, representa importantíssimo precedente a ser aplicado por juízes Brasil afora, o STF nos convida a refletir profundamente sobre o aborto, nos restando, a partir de agora, raciocinar o tema sob a ótica da igualdade de gêneros, da autonomia e liberdade da mulher e do princípio da dignidade da pessoa humana, de modo que possamos construir pontes e diálogos empáticos para tratar de tema que é extremamente relevante à nossa sociedade.

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