Limites à liberdade religiosa. Até onde podemos ir em nome da fé?
Comecemos com concordâncias para que mais tarde passemos para as discordâncias. Acredito que todos nós aceitamos que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e laico. Por Estado laico deve-se entender aquele que não possui uma religião oficial, mantendo-se neutro e imparcial no que se refere aos temas religiosos. Geralmente, esse tipo de organização […]
atualizado
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Comecemos com concordâncias para que mais tarde passemos para as discordâncias. Acredito que todos nós aceitamos que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e laico. Por Estado laico deve-se entender aquele que não possui uma religião oficial, mantendo-se neutro e imparcial no que se refere aos temas religiosos. Geralmente, esse tipo de organização estatal favorece, por leis e ações, a boa convivência entre os credos e religiões, combatendo o preconceito e a discriminação religiosa.
Também acredito que todos nós concordamos que a liberdade religiosa é um direito fundamental que deve ser preservado, independentemente da crença ou religião da maioria. Em um Estado Democrático de Direito laico, todas as religiões são – ou ao menos deveriam ser – respeitadas e todas as crenças preservadas.
Acho que todos também concordamos que vivemos, nos dias de hoje, em uma sociedade multicultural marcada pelo pluralismo, pela diversidade e pelas diferenças. Dessa forma, considerando o fato de que em nossa sociedade temos variados interesses e convicções, o livre exercício de cada uma dessas convicções sejam elas morais, filosóficas e religiosas é também um direito fundamental a ser preservado.
Dito de outra maneira: é direito fundamental não apenas escolher a religião, mas também a forma de professá-la.
Cada religião tem sua particularidade, seu Messias, seu fundamento. As coincidências entre as religiões podem existir. Mas as divergências entre elas são mais ressaltadas do que as convergências. Também é certo que, no legítimo exercício da profissão de fé, é possível que sejam confrontados bens jurídicos tutelados pelo Estado. E é aqui que nasce o interesse do Estado em intervir na forma em que cada religião professa sua fé.
Em 5 de abril de 2016, o Plenário do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu, por maioria, demitir o procurador da República Douglas Ivanowski Kirchner por prática de incontinência pública e escandalosa que comprometera de forma grave, por sua habitualidade, a dignidade do Ministério Público da União.
O ato contra ele imputado: De acordo com a portaria inaugural do Processo Administrativo Disciplinar (PAD)1.00162/2015-03, Eunice Batista Pitaluga, pastora da Igreja Evangélica fundamentalista chamada Hadar, em Rondônia, teria dado uma surra de cipó na esposa de Douglas Kirchner, que presenciou o ato e nada fez para evitar a agressão. Em outras ocasiões, o procurador teria desferido golpes com um cinto e esbofeteado sua mulher. Além disso, a vítima seria frequentemente privada de comida e itens básicos de higiene pessoal.
Um dos argumentos de defesa usados pelo então procurador da República: livre exercício de sua liberdade religiosa, na medida em que devia respeito ao poder de correção da líder que aplicou, na sobrinha e esposa do procurador da República, uma surra que chamou de “correção espiritual”. Assim, por ser mero desdobramento do exercício de sua religião, não poderia ser ele punido por ter permitido que sua líder religiosa e espiritual desse uma surra de cipó em sua própria mulher, uma vez que sua religião assim permitia.
A peculiaridade desse caso é que a moça açodada com cipó em público, mulher do procurador da República e que, segundo provas juntadas ao processo administrativo disciplinar, vivia em cárcere privado e sem condições mínimas de higiene, conseguiu fugir das dependências da igreja e buscar socorro em um abrigo para mulheres. A moça relatou à polícia e às responsáveis pelo abrigo que sofria constantes agressões do marido e que não tinha acesso sequer a absorvente íntimo e pasta de dentes e que já não suportava mais as constantes violências física e psicológica.
Eis o impasse.
Para o caso da moça de Rondônia, que cresceu ciente e conhecedora de todas as normas e as consequentes punições às transgressões às leis da igreja, seria possível afirmar que a pastora e seus fiéis estavam em seu legítimo exercício da liberdade de culto e religiosa ao lhe aplicar as ditas “correções espirituais”, sem que o Estado pudesse intervir para impedir o cometimento da violência?
Quanto a esse caso, a resposta é não. Mas, a depender das circunstâncias, a resposta pode ser sim. Vejamos.
Considerando a máxima de que, quanto maior a intervenção do Estado nas relações privadas, maior será sua capacidade de interferência na vida de cada um de nós. Os movimentos da vida em sociedade dão inúmeras mostras de que caminhamos no contrafluxo do intervencionismo. Dito de outra forma, a sociedade tem se esforçado para que o Estado interfira cada dia menos nas relações travadas cotidianamente na esfera particular.
E esse movimento de mínima intervenção estatal permite que os particulares organizem-se livremente conforme o desejo de seus membros, de modo que tenham regras próprias para o desenvolvimento de suas atividades e disciplina interna, contendo, unicamente, a restrição de que seus membros escolham de fato se querem continuar afiliados àquela associação.
É exatamente esse o caso das igrejas e cultos religiosos.
É possível, legal e legítimo que as pessoas organizem-se livremente conforme o desejo de seus membros para cultuar e professar livremente a sua fé. Ou seja, podem organizar-se livremente, impondo regras que entenderem convenientes para a manutenção e integridade da associação. Significa dizer, por exemplo, que é legítimo que as associações religiosas ou igrejas e cultos formulem regras próprias para seu funcionamento, incluindo, aí, “corretivos espirituais” e eventuais punições físicas e/ou psicológicas a seus infratores.
Qual seria, então, o limite, a linha que não pode ser ultrapassada?
Mesmo vivendo em um Estado que permite a liberdade de culto e religiosa, sem praticamente nenhuma intervenção estatal, os limites a essa expressão religiosa estão na vida e na voluntariedade. Quer isso significar que, não colocando em risco a vida de seus fiéis ou de terceiros, e estando todos concordantes na submissão às regras da associação religiosa, o Estado não pode interferir no exercício da liberdade de culto e religiosa.
Partindo dessa premissa e voltando ao caso da moça de Rondônia, no caso dela já não mais havia voluntariedade na submissão às regras da Igreja Hadar. E foi a partir do momento em que ela decidiu não mais se submeter às regras daquela associação religiosa, a partir do momento em que a voluntariedade deixou de existir, a igreja deveria ter suspendido a aplicação de quaisquer de suas regras à menina.
Ao assim não fazer, submetendo-a a castigos contra a sua vontade e suas convicções religiosas, chegou-se ao limite do livre exercício do culto e da religião e se permitiu a imediata intervenção do Estado nas relações travadas entre a vítima, sua tia e pastora da Igreja Hadar e seu então marido, o procurador da república Douglas Kirchner.
Por outro lado, caso estivesse preservada sua voluntariedade, ou seja, sua livre vontade ao recebimento dos castigos que deveria ser submetida por convicção religiosa, o Estado não poderia promover qualquer espécie de intervenção, na medida em que os envolvidos estavam no livre exercício de culto e religioso.
Portanto, é certo que a liberdade religiosa e de culto deve ser preservada com prevalência sobre outros direitos igualmente fundamentais. Nos dizeres de José Celso de Mello Filho e Alexandre de Moraes, “a conquista constitucional da liberdade religiosa é a verdadeira consagração da maturidade de um povo”.
No entanto, tão importante quanto se preservar a liberdade religiosa e de culto é manter íntegras as linhas-limite traçadas nesse âmbito: o direito à vida e o direito de simplesmente dizer não.