Limitação do uso da internet: sociedade deve repudiar retrocesso
Corremos o risco de viver em uma era de seleção de conteúdo, um evidente retrocesso se considerarmos a infinita gama de informações que são hoje derramadas na internet
atualizado
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Por Erick Vidigal
Ei, você que vive pedindo dicas de seriados do Netflix aos amigos pelo Facebook, Instagram e Snapchat, devo dizer que seus dias de felicidade e consumo de conteúdo de forma ilimitada podem estar contados. Isso porque as principais operadoras de internet (Vivo, Oi, Net e GVT) manifestaram-se pela limitação da quantidade de dados trafegados por seus usuários de internet fixa. Basicamente querem que a banda larga funcione como os dados móveis do celular: aqueles que ultrapassarem os limites estabelecidos pelo plano contratado terão a velocidade da rede reduzida e a prestação do serviço poderá ser interrompida até a renovação mensal do plano.
O presidente da Anatel, João Rezende, muito embora tenha admitido que a ação das operadoras prejudicará milhões de usuários, afirmou que a iniciativa é benéfica, que as operadoras estão pensando no melhor e que “não podemos trabalhar com a noção de que o usuário terá um serviço ilimitado sem custo”. Já o ministro das comunicações, André Figueiredo, rejeitou a possibilidade de extinção da oferta de internet ilimitada de banda larga fixa no Brasil, em meio à preocupação entre consumidores de que as operadoras poderiam aplicar restrições em seus planos. Em entrevista à Rádio Estadão, Figueiredo ressaltou que “não vai abrir mão” de existência de planos com internet ilimitada e não vai permitir que essa opção seja oferecida apenas com preços “abusivos”. Ou seja, admitiu, em outras palavras, que para os novos planos as operadoras podem limitar a utilização da internet, mas não podem fixar preços abusivos aos consumidores que queiram contratar internet ilimitada.
Apesar de o comentário do presidente da Anatel provocar risos, já que é difícil acreditar nas boas intenções sociais das teles, a questão é séria. Muito séria. As teles afirmam que essa limitação não atingiria o usuário médio, mas apenas 20% das pessoas que usam a internet banda larga em demasia (como se 20% dos usuários de internet no Brasil significasse um número irrelevante). Entre os risíveis pacotes oferecidos, por exemplo, pela Vivo, o máximo de capacidade de tráfego seria de 250 gigabytes. Não existiria nenhum pacote para internet ilimitada. Ou seja, por mais que você, usuário, queira pagar, não haverá um pacote contratável que supere 250 gigabytes.
Cabe aqui uma ressalva. A TIM e outras operadoras que, coincidentemente, não trazem acoplados à sua internet pacotes de TV a cabo, já disseram que não vão aderir à limitação. Em outras palavras, aquelas operadoras que não oferecem, junto com seus pacotes de internet, serviços de TV por assinatura (em eterna briga com Netflix e outros serviços de streaming) continuarão a oferecer internet banda larga ilimitada a seus usuários.
Feito esse parêntese, dados do IBGE revelam que 70% dos brasileiros com acesso utilizam a internet para fins educacionais, 6 milhões de pessoas estudam em universidades pela internet, sem falar em cursos técnicos e de aperfeiçoamento profissional. Há aqueles autônomos que utilizam a internet como ferramentas de trabalho e grandes formadores de opinião que lançam seus conteúdos em podcast ou vídeos do Youtube. Todas essas milhões de pessoas estariam profundamente prejudicadas com o que pretendem as teles, como reconheceu o próprio presidente da Anatel.
O Brasil é um país de proporções continentais. Devemos pensar que, muito embora tenhamos quase metade da população brasileira conectada à internet, há uma outra metade que não está. Há milhões de pessoas que utilizam a rede como forma de transcender seu lugar físico. Quero dizer com isso que para aqueles que vivem em cidades do interior, muitas vezes com pouquíssimo acesso físico a tudo o que há na capital (de bibliotecas e museus a roupas e alimentos) a única forma ou instrumento de acesso é a internet.
A restrição de utilização da rede mundial de computadores, nos moldes ofertados pelas operadoras, restringirá a capacidade dessas pessoas de, por meio da internet, serem capazes de expandir suas mentes, suas visões de mundo, seus conhecimentos sobre as coisas e suas possibilidades de futuro. Portanto, quando se restringe o acesso das pessoas à internet ou, ainda, à quantidade de conteúdo que aquelas pessoas podem acessar, gera-se um retrocesso social gigantesco. Estamos falando, em termos jurídicos, de direitos e garantias fundamentais.
Não é possível negar que estamos vivendo em plena era digital, em que a rede mundial de computadores é um dos mais poderosos instrumentos de informação – que também educa e forma. Essa restrição obrigará que as pessoas passem a escolher o tipo de conteúdo que consumirão. Escutarão podcasts menores, os aplicativos on-line de informações sairão das telas dos tablets que funcionem apenas via WiFi e passarão a assistir apenas cinco filmes mensais no Netflix, isso se o usuário utilizar sozinho seu pacote contratado.
Ou seja, corremos o risco de viver em uma era de seleção de conteúdo, um evidente retrocesso se considerarmos a infinita gama de informações que são hoje derramadas internet a fora.
É possível que sejamos obrigados pelas operadoras de telefonia, aquelas mesmas que oferecem aos seus usuários os piores serviços de internet já vistos, que são campeãs de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor e de ajuizamentos de ações nos juizados especiais do Brasil, a viver restringindo conteúdo para que não tenhamos apenas 4 dias por mês de acesso.
Mas ora, não serão todas as operadoras de telefonia que vão aderir a essa restrição! Correto. Mas devemos levar em consideração, por exemplo, que as empresas que optarem por franquias ilimitadas não estão presentes em todas as regiões do país. Isso quer dizer que a TIM, por exemplo, não fornecerá sua internet banda larga ilimitada aos rincões do Acre. Haverá, portanto, restrição de acesso a essas regiões já que não restarão alternativas aos usuários a não ser a contratação com as grandes operadoras.
Essa pretensão das operadoras, preliminarmente avalizada pelo presidente da Anatel, claramente fere o Marco Civil da internet – a Lei 12.965 de 2014. O Art. 4o da referida lei disciplina o uso da internet no Brasil e afirma que se tem por objetivo a promoção:
I – do direito de acesso à internet a todos;
II – do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos;
No artigo art. 7o, o legislador assegura que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário resguarda-se o direito de não suspensão da conexão à web, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização.
Esses artigos deixam claro que, na atualidade, a rede mundial de computadores é instrumento de promoção ao exercício da cidadania, já que é capaz de produzir acesso à informação, ao conhecimento e à inserção dos usuários nos debates dos assuntos públicos fundamentais na vida em sociedade
É certo que um dos maiores desafios do Estado brasileiro é a manutenção dos direitos fundamentais sociais e culturais conquistados. Umas das formas de se impedir que esses direitos fundamentais sociais sejam suprimidos ou alterados é fortalecer o princípio da vedação ao retrocesso social. Esse princípio assegura que leis ou atos normativos não podem restringir ou suprimir direitos e garantias sociais já conquistados.
Acredito que uma eventual legislação ou ato praticado pela própria Anatel – que autorize as teles de limitar o uso da internet banda larga – signifique, sim, um retrocesso social gigantesco, sendo possível eventual intervenção do poder judiciário favoravelmente aos consumidores. Não apenas porque pode promover a existência de abusos econômicos entre as operadoras e usuários, mas também porque constitui verdadeiro retrocesso social.
Caso nada seja feito em favor dos consumidores privados, ao contrário do que diz o ditado popular, de fato não se deve negar um copo de água à ninguém, já a senha de WiFi…
Por Erick Vidigal, doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP e Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), das Faculdades Projeção e da Escola Paulista de Direito (EPD)