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Licença-maternidade é direito de todas as mães: biológicas e adotivas

Aplausos ao Supremo Tribunal Federal, que mudou o próprio entendimento e estendeu o benefício às mães adotantes

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As discussões sobre o papel da mulher na sociedade e os direitos que envolvem as relações familiares vêm ganhando extrema relevância no dia a dia. No último 10 de março, o Supremo Tribunal Federal (STF) nos fez o grande favor de elevar os debates a outro patamar. Aliás, ultimamente, esse tem sido o papel do Poder Judiciário: mostrar-se fortalecido enquanto os Poderes Legislativo e Executivo revelam-se falidos.

Na análise do Recurso Extraordinário nº 778.889/PE, o STF alterou jurisprudência do próprio tribunal, fixada há mais de 10 anos e declarou a inconstitucionalidade de lei que estabelecia diferenças entre mães adotantes e gestantes, bem como escalonava tempo de licença-maternidade a depender da idade da criança adotada.

O julgamento histórico foi o mesmo que o Supremo Tribunal Federal dizer: ei, sociedade, precisamos falar sobre feminismo, família e adoção.

A Constituição de 1988 jogou nas nossas caras, para que todos nós víssemos, que a ideia patriarcal romana de família já não fazia parte da mentalidade do Legislador Constituinte. Aquela terrível noção de que a instituição familiar era formada com única intenção patrimonial, deixando-se de lado – absolutamente de lado – a afetividade.

A Constituição Federal superou o conceito de família como aquela instituição hierarquizada, em que o homem é o chefe da sociedade conjugal, formada pelo casamento tradicional – papai, mamãe e filhinhos. Para o constituinte de 1988, as relações sociais haviam mudado de tal forma que aquela representação da instituição familiar formada para constituir patrimônio já não se encaixava na realidade. A percepção do que era família e seus fundamentos havia mudado.

Disse o legislador, para quem quisesse ouvir: agora o conceito de família é múltiplo! Temos famílias originadas de uniões estáveis, temos famílias monoparentais e temos famílias homoafetivas, e todas serão igualmente protegidas pela Constituição Federal.

A família hoje é formada menos para proteger o patrimônio e mais para permitir o fortalecimento do primado da afetividade.

Despatrimonializou-se o direito de família, trazendo a afetividade como elemento fundamental para a formação de todo e qualquer indivíduo. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em importantíssimo julgamento, entendeu que o abandono afetivo gera direito à indenização por dano moral, por gerar violência sentimental e moral tão grande que é capaz de comprometer a própria dignidade do ser humano – mas esse é tema para um próximo debate.

Consequência lógica desse carro abre-alas, trazido pela Constituição de 1988, foi o rompimento com a ideia de que existiam diferenças entre filhos. Colocou-se uma pá de cal em cima daquela ideia de que eles estavam em categorias distintas. Aquela tenebrosa categorização dos filhos em legítimos – aqueles nascidos no seio familiar na constância do casamento, puros, santos e imaculados, abençoados com todas as sortes e direitos – e ilegítimos, adulterinos, incestuosos, e adotivos. Nessa categoria, os pobres indivíduos não mereciam sequer reconhecimento de sua existência e viviam, em sua maioria, largados à marginalidade e à própria sorte.

A libertação de todos esses males – ainda que em nível formal – foi consagrada na Constituição Federal, pelo artigo 227, §6º: Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Em outras palavras, a Constituição Federal vedou qualquer espécie de diferenciação entre filhos, sendo inconstitucional conferir qualquer categorização entre eles, dando a eles proteção integral de forma indistinta. Viva!

Fincados esses importantes marcos na evolução do reconhecimento sobre a pluralidade do conceito de família, o legislador seguiu em frente e deu outro grande passo na consolidação desses direitos familiares: ainda que aos poucos, com erros e acertos, foi apagando as linhas que categorizavam as mães. Se já não mais era pertinente colocar os filhos em categorias, como seria possível fazê-lo com a maternidade, distinguindo mães biológicas e adotivas, estabelecendo mais direitos a umas do que a outras?

As diferenciações foram se apagando, não apenas entre as mães adotantes e gestantes, entre os filhos biológicos e adotantes, mas também entre mães servidoras públicas e privadas. A evolução legislativa foi rápida e, em 10 anos, já tínhamos em nosso ordenamento jurídico leis que concediam o mesmo prazo de licença-maternidade para mães gestantes e adotantes e já haviam densas discussões sobre a constitucionalidade do escalonamento dessa licença, vinculada à idade da criança.

Sim, leitor. É chocante, mas havia entre nós, até dia 10 de março de 2016, uma lei que estabelecia diferença de tempo de licença maternidade a depender da idade da criança. Se a criança adotada fosse bebê, a licença se estendia a 120 dias. Mas, se fosse maior de 3 anos, apenas 30 dias, prorrogáveis por mais 15. Ou seja, míseros 45 dias de convivência ininterrupta entre mães adotantes e criança adotada.

Daí o questionamento: estaria de acordo com o princípio da proporcionalidade estabelecer licença-maternidade em período reduzido quando a criança adotada tiver mais de 3 anos de idade?

É preciso pensarmos melhor sobre as etapas que envolvem a adoção, especialmente quando olhamos para a situação das crianças que chegam a esses novos lares. Não raro, elas carregam em seus históricos as marcas dos maus-tratos, do abuso físico, psíquico e/ou sexual, do abandono afetivo e do descaso social.

No recentíssimo julgamento do Recurso Extraordinário nº 778.889/PE, o Ministro Roberto Barroso trouxe dados que merecem discussão social urgente.

O ministro trouxe conclusões de estudos que demonstram relação direta entre a maior idade da criança e a profunda dificuldade em estabelecer relações de afeto e confiança com outras pessoas. Isso porque, quanto mais velha a criança adotada, mais tempo de sua vida ela passou em orfanatos ou abrigos. Portanto, a chance de exposição dessa criança aos irreversíveis efeitos do abandono e da solidão também é maior. Apenas o tempo de convivência é capaz de criar conexões entre pais e filhos adotantes.

A segunda constatação das pesquisas é que, quanto maiores o tempo, a presença e a afetividade dos pais adotantes, maiores as chances de recuperação e de cura emocional da criança adotiva e, portanto, maiores as chances de adaptação às novas famílias.

A terceira constatação das pesquisas afirma que as crianças adotadas necessitam de mais cuidados em relação à saúde do que aquelas não adotadas, na medida em que são, em sua grande maioria, negligenciadas nas suas infâncias e, por exemplo, sequer foram imunizadas com as vacinas mais fundamentais.

Outra importante reflexão diz respeito à rejeição sofrida por crianças colocadas à adoção e que tenham mais de 3 anos de idade. Dados do Conselho Nacional de Justiça concluem que, do total dos atuais adultos que se encontram na fila de adoção, 68% pretendem adotar crianças com menos de 3 anos de idade, que representam apenas 4% do universo das que aguardam adoção.

Ou seja, a conta não fecha.

Todos os estudos mais recentes revelam a verdade assoladora de que as crianças adotadas com mais de 3 anos de idade são as que mais requerem cuidados e atenção, já que passaram a maior parte de suas vidas longe de um seio familiar.

E há mais!

Essa odiosa prática legislativa de escalonar a licença-maternidade a depender da idade da criança, restringindo o convívio entre a mãe adotante e o filho produz um efeito social terrível, que desestimula ainda mais a adoção de crianças mais velhas.

E foi exatamente isso o que o Supremo Tribunal Federal disse. Naquele julgamento, deixou-se claro que o tratamento mais gravoso dado ao adotado de mais idade viola o princípio da proporcionalidade, na medida em que se cria mais dificuldade a quem mais precisa, especialmente porque o fator mais determinante da adaptação é a disponibilidade do tempo dos pais para a criança adotada.

Esse julgamento do Supremo Tribunal Federal, do dia 10 de março de 2016, deve ser aplaudido de pé. De uma só vez estabeleceu a equivalência entre os direitos entre mães adotantes e mães gestantes, acabou com as diferenças entre períodos de licença maternidade às mães adotantes de crianças mais velhas, trouxe para debate a necessidade premente de que sejam socialmente estimuladas as adoções tardias e, para finalizar, trouxe um discurso relevantíssimo sobre a fundamental importância da autonomia da mulher.

Defendeu o Ministro Roberto Barroso que tão importante quanto o direito da criança é assegurar o direito da mulher, minoria não em números, mas em direitos, por ser culturalmente aviltada e estigmatizada no âmbito de nossa sociedade patriarcal, e sobre o qual curiosamente silencia grande parte da doutrina e a jurisprudência brasileiras.

Por fim, trouxe-nos uma aprofundada reflexão feminista sobre a demasiada oneração da mulher no âmbito familiar. Esse trecho merece transcrição:

“Os desafios da família que adota uma criança não são pequenos. Mas devido a razões culturais, o membro da família mais onerado pela experiência é a mulher. E o não desenvolvimento de um discurso feminino sobre a questão é por si só sinal da naturalização da desigualdade e do estigma. A chegada da criança produz um substancial impacto sobre vida da mãe adotante, que passa a girar em torno da saúde, das dores e das dificuldades do filho”.

Concluiu-se, assim, que não há plausibilidade alguma em se conferir licença maternidade à mães adotantes de 120 dias e, dentre as adotantes, uma licença maternidade de apenas 45 dias àquelas que abraçaram, fraternalmente, o desafio de adotar uma criança mais velha e, portanto, mais traumatizada.

O entendimento encartado pelo Supremo Tribunal Federal, nesse julgamento, é capaz de demonstrar como é possível que o direito e a justiça dialoguem com a fraternidade, com a solidariedade e sirvam de canaleta para o aperfeiçoamento moral da humanidade, em que a cada tropeço sejamos capazes de nos reerguer e caminharmos em direção ao bem e à formação de um mundo melhor.

Que bela lição os senhores nos deram, ilustres Ministros do Supremo Tribunal Federal!

Flávia Guth é advogada associada do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Advocacia.

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