Combater o abuso de poder não é combater a autoridade
Por Erick Vidigal A Constituição de 1988, ao estabelecer que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, justificou a razão pela qual a disciplina dos direitos e garantias fundamentais é inaugurada com a afirmação de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”. Considerando que os governos […]
atualizado
Compartilhar notícia
Por Erick Vidigal
A Constituição de 1988, ao estabelecer que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, justificou a razão pela qual a disciplina dos direitos e garantias fundamentais é inaugurada com a afirmação de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…”.
Considerando que os governos contemporâneos carregam um misto de elementos democráticos, oligárquicos e monárquicos, para efeitos deste artigo vou me valer das ideias propostas por Karl Popper e pensar a democracia como a espécie de regime que, em contraste com a ditadura ou a tirania, contempla formas de as pessoas controlarem seus líderes e, até mesmo, retira-los de seus cargos quando necessário, valendo-se sempre e tão somente dos mecanismos institucionais previstos no próprio ordenamento jurídico. É a ideia da possibilidade de votar contra as pessoas, e não a favor de pessoas. A ideia por ele proposta de proclamar, em nome da tolerância, o direito de não sermos tolerantes com os intolerantes.
Em uma das únicas democracias do mundo que ainda ostenta em seu ordenamento jurídico o famigerado crime de desacato – inconstitucional em sua essência e rejeitado por todos os organismos internacionais que atuam na defesa dos direitos humanos –, o abuso de autoridade é uma constante. Pode ser algo como o uso de algemas em pessoas que não apresentam qualquer resistência à prisão, a requisição de arapongas para atuarem clandestinamente em investigações da Polícia Federal, os grampos ilegais, o vazamento de informações sigilosas de maneira seletiva, a exposição de presos de forma vexatória ou a voz de prisão dada ao funcionário da companhia aérea que não permitiu o embarque do juiz que perdeu o horário do check in. Mas, às vezes, pode ser algo no plano institucional, como o oferecimento de uma denúncia evidentemente descabida pelo Ministério Público com o intuito único de constranger publicamente o denunciado, a decisão judicial que condena o porteiro do prédio a chamar de Excelência o morador que é juiz, a usurpação de funções típicas de um dos poderes da República por outro ou mesmo o ato de chamar para si a condição de herdeiro de um já extinto poder moderador, com a finalidade de interferir indevidamente na atuação dos outros poderes.Nos estranhos tempos atuais, em que a idolatria vazia comumente dirigida ao jogador de futebol foi redirecionada para a figura do agente público que se deixa seduzir e mover pelo aplauso das massas – agindo como justiceiro diante de uma população sedenta por justiça, em evidente negação às regras que caracterizam um Estado como sendo de Direito –, diversos são os limites legais que vêm sendo ultrapassados e que precisam urgentemente ser restabelecidos.
Com efeito, nesse universo de abusos cometidos contra a ordem constitucional vigente, tornou-se prática corriqueira no âmbito do Poder Judiciário a anulação de investigações policiais extremamente relevantes e necessárias ao processo de combate à corrupção. Foi assim com as operações Castelo de Areia, Banestado, Chacal, Satiagraha, Dilúvio, Poseidon e Diamante.
Atualmente – e a partir do exemplo dado pelas instituições republicanas na condução do caso “Mensalão” –, a sociedade lança suas expectativas e preocupações sobre a mais importante de todas as investigações de corrupção da história do Brasil, a saber, a Operação Lava-Jato. Expectativas, porque o esquema de lavagem de dinheiro e distribuição de propinas sob investigação alcança empresários das maiores empreiteiras do país, além de partidos políticos e autoridades públicas do alto escalão da República. Preocupações, porque os abusos de autoridade que levaram à anulação das investigações assinaladas podem, a qualquer momento, ser praticados no âmbito da Lava-Jato, colocando todo o trabalho até aqui desenvolvido sob o risco da anulação judicial. Essa a razão pela qual merece ser recebida com cautela – e analisada com olhar cirúrgico – toda e qualquer tentativa de se opor ao aperfeiçoamento do controle do abuso de autoridade.
Não são poucas as críticas atualmente dirigidas ao PLS 280/2016 que pretende inserir em nosso ordenamento jurídico uma Lei de Abuso de Autoridade que seja compatível com a ordem constitucional de 1988, uma vez que a atual Lei nº 4.898/65, editada sob a égide da Constituição de 1946, não consegue se adequar às necessidades e à estrutura de autoridade do Brasil contemporâneo.
O fato mais interessante e merecedor de questionamento é que tais críticas se valem tão somente de argumentos apelativos, desprovidos, portanto, de fundamentação jurídica mínima para justificar um debate sério em torno do tema. Fala-se, por exemplo, que o PLS 280/2016, se aprovado, iria ser utilizado para intimidar juízes e procuradores. Contudo, os dois primeiros artigos do referido projeto definem como sujeitos ativos do crime de abuso de autoridade os servidores públicos e os membros do Ministério Público e dos três poderes que, no exercício de suas funções, ou a pretexto de exercê-las, abusam do poder que lhes foi conferido. Ou seja, a premissa apelativa, se fosse verdadeira, somente poderia ser utilizada se afirmasse uma tentativa de intimidação não apenas de juízes e procuradores, mas também de ministros, deputados e senadores.
O grande problema do debate de um tema tão importante para a sociedade tendo como base argumentos apelativos é que tal espécie de argumentação é simplória, rasa e perigosa. É simplória porque leva a discussão à praça pública reduzindo-a mediante o falseamento das premissas. É rasa porque é baixa, rasteira, típica de quem claudica na ética e prevarica na lógica. É perigosa porque tenta o apoio de uma massa desinstruída, que conta nos dedos das mãos os livros lidos em sua vida.
O texto do PLS 280/2016 é autoexplicativo. Criminaliza, por exemplo, a prisão fora das hipóteses legais, a falta de comunicação da prisão em flagrante à autoridade judicial, o ato de não se identificar ao preso por ocasião de sua captura, a proibição de que o preso, sem justa causa, se comunique com seu advogado, a colocação de presos de ambos os sexos na mesma cela ou crianças e adolescentes junto com maiores de idade, a realização de interceptações telefônicas ou escutas ambientes sem autorização judicial, a prática de violência moral ou física contra pessoa e a indução ou instigação a alguém para que pratique infração penal com o fim de captura-lo em flagrante delito. Não há uma linha sequer que opere no sentido da intimidação de autoridades no exercício de suas funções, exceto aquelas que não exercem tais funções dentro dos limites traçados pelo ordenamento jurídico. Noutro giro verbal, o projeto não visa à punição do uso da autoridade no exercício de suas atribuições, mas, sim, à punição do abuso.
A tentativa de impedir a aprovação de uma nova Lei de Abuso de Autoridade deve ser vista com atenção pela sociedade, pois já há quem sustente que tal tentativa pode estar sendo motivada por autoridades que pretendem continuar perpetrando abusos, o que pode colocar em risco todo o progresso obtido com a Lava-Jato. No momento em que o Poder Executivo vem empregando todos os seus esforços para apoiar a atuação da Polícia Federal e do Ministério Público, e que o Poder Judiciário vem dando respostas rápidas para a sociedade no exame da matéria, torna-se merecedora de todas as loas a iniciativa do Presidente do Congresso Nacional, Senador Renan Calheiros, de restabelecer, no âmbito do Poder Legislativo, o debate em torno do tema do abuso de autoridade. Não podemos ser tolerantes com poderosos intolerantes. Não podemos concordar que alguns agentes públicos pautem os legítimos representantes do povo brasileiro, mormente quando não chegaram aos seus cargos por meio do voto popular e quando buscam eliminar instrumentos de cidadania e de controle dos abusos praticados por autoridades que não respeitam os limites impostos pelo Estado de Direito.
Erick Vidigal é Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP e professor universitário. Atualmente exerce o cargo de Subchefe Adjunto para Assuntos Jurídicos da Presidência da República.